Em outubro de 2021 eu passei alguns dias de férias em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, visitando meus queridos amigos de longa data, Diego Santana e Sarah Mângia. Mas eu não resisti e aproveitei também para conhecer o campus da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS) e examinar algumas anfisbênias da coleção zoológica (ZUFMS). Ou seja, acabei trabalhando um pouquinho.
Enquanto eu analisava o material da ZUFMS, encontrei um pequeno exemplar da espécie Amphisbaena anaemariae. Descrita em 1997 pelo zoólogo e sambista Paulo Vanzolini, esta espécie é típica do Cerrado, com registros do Tocantins ao Mato Grosso do Sul (havia um registro em São Paulo, corrigido poucos anos atrás por outros pesquisadores). Pois bem, o exemplar da ZUFMS era procedente bem da divisa entre MS e SP, na Fazenda de Ensino, Pesquisa e Extensão, município de Selvíria (MS). Trata-se do registro mais austral (ao sul) conhecido para esta espécie. E o que eu fiz? Chamei minha aluna de graduação Marcella Souza para me ajudar em uma revisão bibliográfica da distribuição geográfica de A. anaemariae. Escrevemos uma nota científica e publicamos na revista Reptiles & Amphibians uma atualização da distribuição geográfica de A. anaemariae.
O pequeno exemplar (com menos de 15 cm de comprimento) de Amphisbaena anaemariae, testemunho do registro mais austral de ocorrência da espécie.
Mapa de distribuição geográfica de Amphisbaena anaemariae. O Cerrado está representado em tom laranja/marrom. O ponto azul representa o local onde o exemplar usado para descrever a espécie em 1997 foi coletado. Pontos brancos representam outros registros citados na literatura científica, e o ponto vermelho é o novo registro, na divisa em MS e SP. Repare que este ponto está em uma área de transição entre o Cerrado e a Mata Atlântica, em uma ecorregião conhecida como Floresta Atlântica do Alto Paraná.
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Em 2019, durante meu pós-doutorado na Universidade Federal de Viçosa, consegui uma bolsa do Field Museum, em Chicago, para examinar espécimes da coleção de répteis, particularmente anfisbênias (lá existe uma das maiores coleções deste grupo no mundo, pois o museu adquiriu a coleção particular de Carl Gans (1923-2009), maior "anfisbeniólogo" da história). Ao trabalhar na coleção, percebi que havia um potinho com pequenos fragmentos de uma anfisbênia africana, Zygaspis quadrifrons. Segundo o catálogo da coleção, os restos foram retirados do estômago de um lagarto da espécie Mochlus sundevallii, coletado na Zâmbia em 1964!
Zygaspis quarifrons (à esquerda ou acima), uma anfisbênia nativa de boa parte da África (da Rep. Democrática do Congo à África do Sul), e Mochlus sundevallii (à direita ou abaixo), lagarto de membros reduzidos, ocorrente do leste ao sudoeste africano.
O calango predador encontra-se diafanizado (um processo de estudo onde a pele é retirada e, por meios químicos, os músculos ficam transparentes e os ossos coloridos) e não foi possível examiná-lo. Mas os restos da anfisbênia foram suficientes para garantir uma identificação inequívoca da espécie. Então, eu me juntei aos colegas Joshua Mata (Field Museum) e Luis Ceríaco (Universidade de Lisboa), para investigar melhor o assunto, que rendeu uma nota científica na revista Reptiles & Amphibians, da Universidade do Kansas.
Restos da anfisbênia retirados do estômago do lagarto. Os números indicam escamas cuja presença e disposição permitem a identificação do exemplar como uma Zygaspis quadrifrons. Entre a primeira e a segunda foto, a parte anterior da cabeça do espécime simplesmente se soltou. Fonte: Costa et al. (2022).
Tanto Zygaspis quadrifons quanto Mochlus sundevallii são encontrados em ambientes com solo arenoso, e frequentemente entram em cupinzeiros para se alimentarem. Então, um encontro entre as duas espécies não é improvável. A dieta dos indivíduos de M. sundevallii geralmente é composta por invertebrados, mas, aparentemente, as anfisbênias também podem entrar no cardápio. Este foi o primeiro registro publicado de uma interação entre essas duas espécies e o primeiro registro de uma anfisbênia como presa do M. sundevallii. E, veja só, graças a material coletado em 1964 e preservado em uma coleção científica.
Em fevereiro de 2022 foi publicada a atualização da lista de répteis do Brasil, na Herpetologia Brasileira, revista da Sociedade Brasileira de Herpetologia. "Ué, mas consta dezembro de 2021 no trabalho!". A verdade é que fechamos a lista em janeiro de 2022, o que atrasou a publicação do fascículo da revista.
Pouco depois da publicação, a "nova lista" ganhou destaque no site do Terra da Gente e no jornalístico Bom Dia Cidade, além dos portais da UFJF e UEMA. Eu também postei um apanhado geral sobre a lista no Twitter, mas acabei deixando o "blog de memórias" de fora, por causa da famosa "falta de tempo". Novidades Seguindo a últimas edições, a nova lista continua apresentando notas nomenclaturais (por exemplo, se uma espécie mudou de gênero, se uma subespécie foi elevada a espécie ou se descobrimos que a autoria ou a data de publicação de um nome vinha sendo citado erroneamente), detalhando os táxons incluídos (citando a fonte e se foi uma nova descrição, revalidação ou primeiro registro no Brasil) e os táxons excluídos (citando a fonte e se, por exemplo, foi uma reidentificação de material testemunho ou sinonímia entre táxons). Novamente, há textos sobre registros duvidosos e registros invalidados para alguma unidade federativa brasileira. E a primeira novidade: detalhamos os registros adicionados em unidades federativas. Listar e comentar tudo isso dá um enorme trabalho e foi um dos motivos da demora de quase 4 anos para publicação da lista (a última edição data de março de 2018). Mas, não foi só isso. Entre uma lista e outra eu passei pelo final do doutorado, entrei no pós-doutorado, depois fui aprovado em concurso para professor na UFJF e ainda veio a pandemia de covid-19. Renato Bérnils também teve suas questões pessoais e profissionais. Decidimos que era o momento de aumentar o time e chamar alguém que pudesse nos ajudar nesta empreitada. Convidamos a colega Thais Guedes, então professora e pesquisadora na Universidade Estadual do Maranhão. Thais chegou com ótimas ideias e botou a mão na massa, especialmente na construção da introdução do texto, na concepção e preparação de todas as figuras, o que trouxe não só qualidade, mas também um atrativo visual para o longuíssimo texto. A lista publicada tem nada menos que 170 páginas, incluindo seis figuras e quatro tabelas, duas delas imensas (uma listando os répteis de cada unidade federativa, e a outra trazendo o "nome completo" de cada táxon, o que inclui seu autor e ano de descrição). As figuras apresentam graficamente informações importantes, como o aumento do número de espécies de répteis do Brasil desde a primeira lista compilada pelo Renato Bérnils em 2005 até a nova lista, e de 1758 (início oficial da taxonomia) até a nova lista; a riqueza de espécies e subespécies de répteis (e de quelônios, jacarés, anfisbênias, lagartos e serpentes separadamente) para cada um dos 26 estados mais o Distrito Federal; a riqueza de espécies endêmicas em cada unidade federativa, incluindo o número de espécies endêmicas de cada unidade federativa; a procedência do holótipo de cada uma das novas espécies descritas desde 2018 e cujo holótipo foi depositado no Brasil; e a porcentagem de espécies ameaçadas, de acordo com o Ministério do Meio Ambiente. Números* A lista anterior (2018) contabilizou 795 espécies de répteis. A nova lista contou, até dezembro de 2021, 848 espécies de répteis no Brasil, sendo 38 espécies de quelônios (tartarugas, cágados, jabutis), 6 de jacarés, 292 de lagartos, 82 de anfisbênias e 430 de serpentes. Nosso país tem a 3ª fauna de répteis mais rica do mundo, atrás apenas da Austrália (1121 espécies) e do México (995 espécies). A região Norte tem a maior riqueza geral de répteis do Brasil. São 450 espécies. Também tem mais serpentes e lagartos. Mas a região Centro-oeste é a única com as seis espécies de jacarés, enquanto a Nordeste possui mais anfisbênias ("cobras-de-duas-cabeças"). Se analisarmos cada unidade federativa (26 estados e o DF), Mato Grosso é campeão. São 292 espécies lá (mais do que toda a região Sul). Por que será? Além de ser um estado grande em área, o Mato Grosso tem Amazônia, Cerrado e Pantanal, ou seja, grande diversidade de ambientes. Bahia e Pará seguem em 2º e 3º lugar, com 277 e 276 espécies de répteis, respectivamente. Além da grande área, a Bahia tem Caatinga, Cerrado e Mata Atlântica, enquanto o Pará tem diferentes "tipos" de Amazônia (florestas de terra firma, alagáveis, mais densas, menos densas...). Se considerarmos os grupos de répteis separadamente, temos padrões distintos. Por exemplo, o Pará é campeão em espécies quelônios, Mato Grosso e Rondônia têm mais espécies de jacarés, Bahia tem mais lagartos e anfisbênias, e o Mato Grosso tem mais espécies de serpentes. Outro dado bem interessante é que das 848 espécies de répteis do Brasil, 399 (47%) são endêmicas, ou seja, só existem aqui. Proporcionalmente, o grupo com mais espécies endêmicas é o das anfisbênias, com 79% das espécies brasileiras exclusivas daqui. E onde estão as espécies de répteis endêmicas do Brasil? A Bahia tem 168 delas, seguida por Minas Gerais (136) e São Paulo (89). Mas dessas 168 espécies endêmicas do Brasil que ocorrem na Bahia, 46 são exclusivamente baianas! Nenhum outro estado chega perto! Por isso, brincamos que a Bahia é a "Austrália brasileira", por causa da diversidade de répteis que só existe lá. Por que isso acontece? Provavelmente porque a Bahia tem muito lugar especial que favoreceu a evolução de espécies, como as dunas do São Francisco e a Chapada Diamantina. Desde a última versão da lista, algumas espécies de países vizinhos foram encontradas pela 1ª vez no Brasil, perto da fronteira. Mas a maioria dos acréscimos da lista foi de espécies novas, descritas por cientistas. Foram 50! Dessas, o 45 têm o Brasil como "localidade tipo". Será que ainda existem novas espécies de répteis a serem descobertas no Brasil? Sim! Um estudo de 2021 aponta nosso país como prioritário para descoberta de novas espécies de répteis. Apesar dessa riqueza toda de répteis no Brasil, 80 espécies eram consideradas ameaçadas de extinção quando a lista foi publicada (uma nova "lista vermelha" foi divulgada em junho de 2022, listando 71 espécies de répteis como ameaçados). E caso você esteja se perguntando qual a importância de sabermos isso tudo, a resposta simples é: a Política Nacional da Biodiversidade tem como um dos seus objetivos a "caracterização e classificação da biodiversidade brasileira" * Trecho adaptado de informações da minha própria autoria, publicados no Twitter. Futuro Pouco depois que uma versão da lista de répteis é publicada, eu começo a receber perguntas sobre quando uma nova edição será lançada. E a resposta geralmente é algo como "não sei, mas espero que dentro de um ano". Afinal, o trabalho da lista é grande e demanda tempo e atenção. E conciliar esta tarefa com o cargo de professor/pesquisador universitário no Brasil não é moleza. Por que não convidamos mais pessoas para ajudar? Eu posso mudar de opinião futuramente, mas hoje eu penso que a lista de répteis funciona bem com poucas pessoas trabalhando nela, porque chegamos a consensos de forma mais fácil e conseguimos dividir tarefas de forma mais eficaz. O que posso adiantar sobre o futuro da lista é: 1) depois de mais de 15 anos como coautor da lista (e à frente dela de 2005 a 2011), Renato Bérnils tomou a decisão de deixar o time; 2) já temos outra pessoa colaborando; 3) estamos conversando com a Sociedade Brasileira de Herpetologia para viabilizarmos uma lista mais dinâmica, seja no site da SBH ou em um site paralelo, onde atualizações serão divulgadas o quanto antes; 4) não sou utópico e acho difícil divulgarmos uma nova lista ainda em 2022.
Riqueza de répteis por Unidades Federativas do Brasil. Margem superior: todos os répteis [espécies (espécies+subespécies)]. Margem inferior: espécies registradas para os cinco grupos distintos de répteis (Testudines, Crocodylia, Amphisbaenia, Lagartos e Serpentes).
"Carcará
Pega, mata e come" Chico Buarque
Se encontrar uma anfisbena em campo já não é fácil, encontrar uma anfisbena sendo predada é ainda menos usual. Conseguir um bom registro fotográfico então, é para poucos. Mas o amigo Fernando Leal é um desses caras. Fernando dirigia por uma estrada não pavimentada em Mariana, Minas Gerais, quando notou um carcará (Caracara plancus) voando com um animal serpentiforme nas garras e, em seguida, pousando sobre o mourão de uma cerca. Fernando parou o carro, foi atrás da ave e conseguiu uma foto excelente de predador e presa. O carcará havia capturado uma anfisbena, mais especificamente uma Amphisbaena alba, a maior (e uma das mais comuns) espécie de anfisbênios do Brasil, podendo medir mais de 80 cm de comprimento.
Carcará e sua presa, uma anfisbena (Amphisbaena alba). Foto: Fernando Leal.
Assustado com a repentina aproximação do Fernando, o carcará bateu asas e foi embora, deixando o almoço para trás. A anfisbena, que media 40 cm, ainda estava viva (e brava), embora fatalmente ferida. Sua cauda foi dilacerada pelo falcão. Muito provavelmente o carcará confundiu a cauda da anfisbena com a cabeça, uma vez que ambas têm formato similar. A Amphisbaena alba tem, inclusive, o comportamento de erguer o rabo quando ameaçada, desferindo uma mordida no eventual predador enquanto este ataca a cauda "pensando" ser a cabeça do réptil. Contudo, a estratégia certamente não funcionou contra o carcará.
Amphisbaena alba seriamente ferida após o ataque do carcará. Foto: Fernando Leal.
Não chovia naquele dia nem havia chovido no dia anterior, e as anfisbenas têm hábitos fossoriais, ou seja, vivem no subsolo. Então, como o carcará capturou o réptil? O fato é que algumas anfisbenas eventualmente rastejam na superfície. Este comportamento parece ser mais comum nas espécies com mais pigmentação dorsal, como é o caso da A. alba. Então, provavelmente a "cobra-de-duas-cabeças" estava se deslocando sobre o solo naquela manhã, quando foi surpreendida pela ave de rapina. Péssima hora em que resolveu "dar um rolezinho".
Agora, onde eu entro nessa história toda? O Fernando me enviou uma mensagem e as fotos do flagrante. Eu conversei com uma aluna do meu laboratório, Nathália Ribeiro Honório, que topou fazer algumas buscas online sobre o possível ineditismo do registro. Usando palavras-chave em português, espanhol e inglês, ela buscou por publicações científicas com relatos de predadores de Amphisbaena alba no Google Acadêmico. De 442 trabalhos resultantes da busca, apenas nove traziam informações relevantes para o nosso estudo, e nenhum citava o carcará como predador de A. alba. Nathália também fez uma busca por todas as fotos do WikiAves de carcarás se alimentando. Foram exatamente 2247 fotos e nós analisamos uma a uma. Dessas, 19 mostravam um carcará com uma presa que (potencialmente) era uma anfisbênia, o que indica que esses lagartos ápodes são eventualmente devorados por este falcão. Mas, nenhuma A. alba foi identificada nas fotos (e esta é uma espécie fácil de ser identificada por fotos). Assim, publicamos o registro do Fernando, junto com uma revisão sobre os predadores de Amphisbaena alba na revista Herpetologia Brasileira. Contando com nosso registro, há relatos confirmados de 10 espécies como predadoras de A. alba, principalmente aves e serpentes. Uma nota científica curta e relativamente simples, mas que traz informações importantes sobre a história natural da anfisbena mais comum do Brasil.
Há quase dois anos um incêndio atingiu a Serra do Cipó, em Minas Gerais. Como membro do Grupo de Assessoramento Técnico (GAT) do Plano de Ação Nacional para Conservação da Herpetofauna da Serra do Espinhaço em Minas Gerais, fui procurado pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) para investigar como o fogo teria afetado a fauna de anfíbios e répteis da região, uma vez que lá ocorrem algumas espécies ameaçadas de extinção. Eu não pude ir, mas consegui enviar uma equipe de ex-alunos da UFJF, seguindo os protocolos de segurança contra a covid-19: André Yves, Celso Rios e Lúcio Lima. No parque Nacional da Serra do Cipó eles se reuniram à Juliana Ferreira e Sônia Mendonça, do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Répteis e Anfíbios (RAN), um braço do ICMBio.
Durante as atividades de campo, eles conheceram o Saulo Araújo, guia turístico e voluntário no parque. Papo vai, papo vem, Saulo mostra uma foto que tirou com o celular, em uma trilha do parque. Era um lagarto tentando devorar outro, de uma espécie distinta!
Os lagartos (ou calangos, como quiser) que Saulo registrou eram da espécie Tropidurus montanus (predador) e Ameivula cipoensis (presa). Tropidurus montanus pertence a um gênero de lagartos com muitas espécies no Brasil, algumas comuns até em cidades (os famosos "calangos-de-muro"). Mas esta espécie, como seu nome já diz, vive em montanhas. Ela só ocorre na Cadeia do Espinhaço, uma cordilheira que se estende de Minas Gerais à Bahia. Embora insetos e outros artrópodes sejam suas principais presas, seu cardápio também pode incluir lagartos menores, como o Ameivula cipoensis. Descoberto na Serra do Cipó (daí o seu nome), o A. cipoensis é uma espécie ainda pouco conhecida; parece ser pouco abundante onde ocorre, sendo vista geralmente à sombra de rochas, tufos de vegetação rasteira ou sobre o solo arenoso, em dias ensolarados.
Justamente o fato do A. cipoensis ser pouco conhecido torna o registro do Saulo importante: pela primeira vez alguém registrou a interação desta espécie com outra. E no caso, o A. cipoensis parece ter levado a pior. "Parece", porque o calangão que tentava devorá-lo se assustou com o Saulo e saiu correndo com sua presa em potencial na boca. Jamais saberemos o desfecho desta história, mas agora temos certeza que os Tropidurus montanus são predadores dos Ameivula cipoensis. A ação do Saulo é um caso de ciência cidadã. Um cidadão não cientista que voluntariamente contribui com a ciência, geralmente coletando dados. E neste caso, mais do que apenas fazer o registro inédito, Saulo também foi um dos coautores da pequena nota científica que publicamos na Herpetologia Brasileira em 2021.
Em 2016, os biólogos Maria Clara do Nascimento e Fred Victor de Oliveira (então estudante de Ciências Biológicas) encontraram durante um estudo de campo em uma fazenda na Caatinga do norte de Minas Gerais, um indivíduo jovem de uma espécie curiosa de sapo. O sapinho foi achado depois da chuva em uma mata ciliar bem alterada, e muitos indivíduos adultos podiam ser ouvidos cantando. O animal foi coletado e levado para o laboratório de herpetologia da Universidade Federal de Minas Gerais, onde eu então fazia meu doutorado.
Na UFMG, Fernando Leal ajudou a identificar o anfíbio como um indivíduo de Ceratophrys joazeirensis, uma espécie típica da Caatinga, com um registro no Cerrado mineiro (Buritizeiro). Embora possua uma ampla distribuição, ocorrendo do Rio Grande do Norte a Minas Gerais, esta espécie é conhecida para menos de 20 localidades. Isso porque possui um comportamento explosivo, ou seja, os indivíduos passam a maior parte do ano enterrados no solo, e dão as caras durante poucos dias de chuva, quando se reproduzem. Este comportamento é tão curioso que duas semanas após o registro feito pela Maria Clara e o Fred, eu estive no mesmo local onde encontraram o sapo, e não havia mais nenhum sinal da espécie. Este novo registro, publicado por nós no ano passado na revista científica Cuadernos de Herpetología, preenche uma lacuna de nada menos que 860 Km entre Buritizeiro (MG) e Feira de Santana (BA), as duas localidades mais próximas para onde o Ceratophrys joazeireinsis é conhecido. Mais um pontinho para colaborar com o conhecimento sobre a distribuição geográfica da nossa fauna.
Ceratophrys joazeirensis registrado em São João da Ponte, Minas Gerais. Foto: Fernando Leal.
Mapa com os pontos de ocorrência conhecidos para o sapo-boi Ceratophrys joazeireinsis. O ponto em vermelho é o novo registro, em São João da Ponte, Minas Gerais.
Este "blog" ficou parado por mais de um ano, mas resolvi retomar as postagens sobre minhas publicações, de certa forma para manter um registro histórico.
Pois bem, vamos falar de 2021. Foi um ano em que publiquei pouco. Apenas três notas científicas, porém, trabalhos que acho bacanas. No primeiro deles, em parceria com Maria Clara do Nascimento, Alexander Zaidan e Anderson Marcos de Oliveira, relatamos o primeiro registro confirmado da coral-verdadeira Micrurus ibiboboca em Minas Gerais, mais especificamente no município de Almenara, nordeste do estado, região de Mata Atlântica. A serpente havia sido coletada anos antes, em 2005, pelo Prof. Renato Feio, e depositada na coleção de répteis do Museu de Zoologia João Moojen, da Universidade Federal de Viçosa. Mas o ineditismo do registro passou batido por todos, até ser notado pelo Anderson, então aluno de mestrado na UFV, que entrou em contato comigo. Eu sabia que a Maria Clara e o Alexander tinham registros da espécie na Reserva Particular do Patrimônio Natural Mata do Passarinho, bem na divisa entre Bahia e Minas Gerais e resolvemos juntar esforços para publicar os dados. Com isso, Minas Gerais passa a ter registros de seis espécies de corais-verdadeiras nativas, que são espécies de interesse médico, por conta da toxicidade do seu veneno. Na nota publicada na revista científica Oecologia Australis, nós ainda fizemos uma bela revisão de literatura dos registros desta espécie no Brasil, disponíveis em um mapa dentro do próprio trabalho e em uma planilha detalhada no material suplementar.
Exemplar de Micrurus ibiboboca preservado no Museu de Zoologia João Moojen, da Universidade Federal de Viçosa (MZUFV 1209), coletado na Fazenda Limoeiro, Almenara, Minas Gerais. Primeiro registro confirmado da espécie em território mineiro.
Amphisbaena spurrelli é uma espécie bastante rara e pouco conhecida de anfisbena. Foi descrita pela primeira vez em 1915 pelo cientista George Boulenger, em homenagem a Herbert Spurrell, um médico e zoólogo que coletou dois exemplares na Colômbia e os levou ao Museu Britânico, na Inglaterra, sua terra natal.
Outros três exemplares foram encontrados nas décadas seguintes na Colômbia e no Panamá, e a espécie ganhou uma redescrição em 1962. Desde então, a única novidade de relevância sobre a Amphisbaena spurrelli foi um novo registro no Panamá, divulgado pela União Internacional para Conservação da Natureza (IUCN), sem muitos detalhes. Dada a escassez de informações, a espécie é considerada "deficiente de dados" (DD) pela IUCN. Isso quer dizer que há tão pouca informação sobre este bicho que não dá para dizer que está ameaçado de extinção, mas também não dá para afirmar que não esteja correndo risco de sumir do mapa. E isso não é exclusividade da Amphisbaena spurrelli, pois pesquisadores estimaram em 2013 que 21% de todos os répteis do planeta são "DD" e, por isso, merecem a atenção de nós mesmos, cientistas. E é aí que eu entrei na estória. Em 2019, enquanto eu estava no pós-doutorado pela UFV (Universidade Federal de Viçosa), recebi financiamento de dois museus dos EUA, o American Museum of Natural History em Nova Iorque e o Field Museum em Chicago. Fui para lá especialmente para examinar anfisbênias das coleções desses museus. E, lá no American Museum me deparei com uma Amphisbaena spurrelli que havia sido coletada em 1976 no Panamá e jamais havia sido citada na literatura científica. Tendo acesso às fotos dos dois exemplares depositados no Museu Britânico e examinando pessoalmente os outros três exemplares que já eram conhecidos da espécie (e que estão em museus dos EUA) não restava dúvida de que eu tinha em mãos um "novo" exemplar de A. spurrelli. Seu local de coleta preenche uma lacuna de 210 km entre as duas localidades para onde a espécie é conhecida no Panamá. E ainda há uma enorme lacuna sem registros entre as localidades panamenhas e colombianas. Mas, tudo indica que isso é devido à escassez de pesquisas na região. O novo estudo acaba de ser publicado na revista científica Phyllomedusa: Journal of Herpetology. Parece pouco, mas mais um pontinho no mapa de registros de espécies raras como Amphisbaena spurrelli nos ajudam a combater lacunas sérias de informações que podem impactar negativamente medidas de conservação. É mais um tijolinho na construção do conhecimento científico.
"Novo" exemplar de Amphisbaena spurrelli coletado em uma floresta inundada em 1976, na região do rio Majecito, Panamá. O animal mede cerca de 25 cm de comprimento total.
Mapa com os pontos de registro de Amphisbaena spurrelli. O novo registro está em vermelho.
Muitas espécies de anfisbênias ("cobras-de-duas-cabeças") exibem um comportamento de defesa chamado urotomia, que consiste simplesmente em quebrar a cauda para escapar de um predador. Enquanto o predador se distrai com a cauda quebrada, a anfisbênia foge em segurança. Talvez você já tenha ouvido esse papo antes, ou até visto isso ocorrendo, não com uma anfisbênia, mas com uma lagartixa. É que muitos lagartos também são capazes de quebrar a própria cauda. A diferença é que neles uma cauda nova é regenerada, enquanto nas anfisbênias, não. Uma anfisbênia, portanto, pode quebrar sua própria cauda para fugir de um predador uma única vez na vida, ao contrário de lagartos e lagartixas.
Será que alguns fatores podem ter relação com a quebra da cauda em anfisbênias? Pensando nisso, resolvemos (Jhonny Guedes [UFG], eu e Mário Moura [UFPB]) investigar o assunto, usando como modelo uma espécie de anfisbênia chamada Amphisbaena vermicularis, habitante de praticamente todo o nordeste e centro-oeste do Brasil, além de algumas porções do sudeste e norte brasileiro, e de parte da Bolívia.
Mapa com os pontos de registro dos exemplares de Amphisbaena vermicularis examinados no estudo. Em vermelho, exemplares com a cauda quebrada e em azul os exemplares com cauda íntegra.
Para realizar o estudo, publicado na revista científica Ecology and Evolution, nós examinamos quase 400 exemplares desta espécie depositados em coleções biológicas e observamos se a cauda estava quebrada e cicatrizada (indicativo de que aquele indivíduo realizou urotomia durante a vida) ou estava íntegra (ou seja, nunca fez urotomia). Caso a cauda estivesse quebrada, mas não cicatrizada, o indivíduo era desconsiderado, pois não teríamos como saber se a quebra ocorreu após a coleta, durante o manuseio do material na coleção, por exemplo.
Primeiro, nós descobrimos que a chance de quebrar a cauda não difere entre machos e fêmeas. Mas, quanto maior o indivíduo, maiores as chances de ter perdido a cauda. A causa mais provável para isso é que indivíduos maiores são mais velhos, portanto, com mais probabilidade de já terem se deparado com um predador e recorrido à quebra da cauda para escaparem com vida. Foi observado também que os indivíduos de localidades com temperatura média maior têm mais chance de quebrarem a cauda, enquanto os de localidades onde chove mais tendem menos. Por quê? Não dá para ter certeza, mas a hipótese é de que em regiões mais quentes as anfisbênias são mais ativas, o que pode aumentar a chance de dar de cara com um predador e perder a cauda (aqui cabe um parêntese: é sabido que os indivíduos de Amphisbaena vermicularis deslocam-se não apenas no subsolo, mas na superfície também). Já em regiões onde chove com mais intensidade, as anfisbênias são obrigadas a subir à superfície quando suas galerias subterrâneas inundam, o que também as deixa mais expostas a predadores, mas com mais chances de perder a vida ao invés de apenas a cauda. Essa diferença sutil pode ser porque, durante chuvas fortes, as anfisbênias vêm à superfície em um momento em que estão menos aptas a fugir dos predadores e acabam devoradas. As anfisbênias são um dos grupos de répteis menos estudados no mundo. Das cerca de 200 espécies conhecidas, umas 80 ocorrem no Brasil, mas sabemos ainda muito pouco sobre a biologia delas. Estudos como este, apesar de simples, nos ajudam a preencher algumas lacunas de conhecimento básico sobre esses animais de hábitos subterrâneos, além de ressaltar a importância das coleções biológicas no avanço científico.
Uma anfisbênia da espécie Amphisbaena heterozonata sendo devorada por uma maria-faceira (Syrigma sibilatrix) em um dia de chuva. Fonte: Revista Brasileira de Ornitologia, 23(4), 2015.
Um pequeno adendo
O título do artigo científico aqui citado é "A new tale of lost tails" ("Um novo conto sobre caudas perdidas"). Além do trocadilho em inglês o "novo" ali faz referência a um estudo anterior que publicamos em 2014, sobre a quebra da cauda em duas espécies de serpentes, Drymoluber brazili e D. dichrous. Assim como as anfisbênias, algumas serpentes podem perder cauda para se defender, a qual também não se regenera. Naquele estudo, encontramos que a chance de uma cobra perder parte da cauda aumenta à medida em que o indivíduo cresce (e fica mais velho). Na época, a Ciência Hoje das Crianças publicou uma matéria sobre este estudo, escrita por Marcelo Garcia: http://chc.org.br/com-a-cauda-na-mao/ Hoje, 80 das mais de 800 espécies de répteis conhecidas para o Brasil são consideradas ameaçadas de extinção. Uma dessas espécies é Leposternon octostegum, uma anfisbênia rara, descrita pela primeira vez em 1851 pelo cientista francês André Duméril, a partir de um único exemplar, preservado no Museu de História Natural de Paris (França). Em 1881, o cientista russo Alexander Strauch encontrou no Museu de Bonn (Alemanha) mais um exemplar preservado da espécie, que havia sido capturado na Bahia pelo também pesquisador Otto Wucherer, que morou por anos em Salvador. Exemplar de Leposternon octostegum. Foto: Clodoaldo L. Assis. Em 2011, um grupo de pesquisadores brasileiros citou a ocorrência de Leposternon octostegum na Reserva de Imbassaí, no município baiano de Mata de São João, durante um inventário de répteis. Em 2013, vários exemplares foram encontrados por biólogos durante a supressão da vegetação em algumas localidades da região metropolitana de Salvador. Por ser encontrada em uma área geograficamente pequena e sob intensa pressão de atividades humanas, L. octostegum foi considerada em perigo de extinção pelo Ministério do Meio Ambiente, em 2014. Devido a raridade e grau de ameaça de Leposternon octostegum, a divulgação de novos registros da espécie é importante para compreendermos melhor a sua biologia e para que medidas de conservação mais adequadas possam ser tomadas. É exatamente isso que Clodoaldo Assis (doutorando em Biologia Animal na UFV) e eu acabamos de fazer em uma publicação na revista científica Herpetologia Brasileira. Em outubro de 2014, Clodoaldo acompanhou a derrubada de uma antiga plantação de Pinus em uma área da Fazenda Várzea de Baixo, em Mata de São João, Bahia. Na ocasião, ele encontrou quatro exemplares de Leposternon octostegum mortos no chão, após a passagem dos tratores que removeram a vegetação e a camada superior do solo. E viu outros dois serem devorados rapidamente por carcarás -- o primeiro registro de predação envolvendo L. octostegum. Detalhe da cabeça de Leposternon octostegum. Repare o formato do focinho, bem adaptado para cavar o solo, e o olho bastante reduzido. Foto: Clodoaldo L. Assis. A Fazenda Várzea de Baixo fica a apenas 15 km da Reserva de Imbassaí, mas é só a sexta localidade com registro confirmado de Leposternon octostegum. Todos os registros da espécie estão uma área de apenas 780 km². Originalmente, a região era coberta pela Mata Atlântica, bioma que já teve mais de 80% vegetação nativa desmatada. Apesar disso, havia pistas de que L. octostegum sobrevive em áreas de vegetação secundária, ou seja, onde a Mata Atlântica está em regeneração. Sua presença agora reportada em uma plantação de pinheiros abandonada reforça essas pistas, e pode ser uma boa notícia. Se populações de L. octostegum forem capazes de se manter nesses ambientes secundários, sua conservação talvez seja menos difícil. Registros de ocorrência conhecida de Leposternon octostegum. O novo registro é indicado em vermelho. |
AutorHenrique C. Costa Histórico
January 2024
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