Há quase dois anos um incêndio atingiu a Serra do Cipó, em Minas Gerais. Como membro do Grupo de Assessoramento Técnico (GAT) do Plano de Ação Nacional para Conservação da Herpetofauna da Serra do Espinhaço em Minas Gerais, fui procurado pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) para investigar como o fogo teria afetado a fauna de anfíbios e répteis da região, uma vez que lá ocorrem algumas espécies ameaçadas de extinção. Eu não pude ir, mas consegui enviar uma equipe de ex-alunos da UFJF, seguindo os protocolos de segurança contra a covid-19: André Yves, Celso Rios e Lúcio Lima. No parque Nacional da Serra do Cipó eles se reuniram à Juliana Ferreira e Sônia Mendonça, do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Répteis e Anfíbios (RAN), um braço do ICMBio.
Durante as atividades de campo, eles conheceram o Saulo Araújo, guia turístico e voluntário no parque. Papo vai, papo vem, Saulo mostra uma foto que tirou com o celular, em uma trilha do parque. Era um lagarto tentando devorar outro, de uma espécie distinta!
Os lagartos (ou calangos, como quiser) que Saulo registrou eram da espécie Tropidurus montanus (predador) e Ameivula cipoensis (presa). Tropidurus montanus pertence a um gênero de lagartos com muitas espécies no Brasil, algumas comuns até em cidades (os famosos "calangos-de-muro"). Mas esta espécie, como seu nome já diz, vive em montanhas. Ela só ocorre na Cadeia do Espinhaço, uma cordilheira que se estende de Minas Gerais à Bahia. Embora insetos e outros artrópodes sejam suas principais presas, seu cardápio também pode incluir lagartos menores, como o Ameivula cipoensis. Descoberto na Serra do Cipó (daí o seu nome), o A. cipoensis é uma espécie ainda pouco conhecida; parece ser pouco abundante onde ocorre, sendo vista geralmente à sombra de rochas, tufos de vegetação rasteira ou sobre o solo arenoso, em dias ensolarados.
Justamente o fato do A. cipoensis ser pouco conhecido torna o registro do Saulo importante: pela primeira vez alguém registrou a interação desta espécie com outra. E no caso, o A. cipoensis parece ter levado a pior. "Parece", porque o calangão que tentava devorá-lo se assustou com o Saulo e saiu correndo com sua presa em potencial na boca. Jamais saberemos o desfecho desta história, mas agora temos certeza que os Tropidurus montanus são predadores dos Ameivula cipoensis. A ação do Saulo é um caso de ciência cidadã. Um cidadão não cientista que voluntariamente contribui com a ciência, geralmente coletando dados. E neste caso, mais do que apenas fazer o registro inédito, Saulo também foi um dos coautores da pequena nota científica que publicamos na Herpetologia Brasileira em 2021.
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AutorHenrique C. Costa Histórico
January 2024
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