Muitas espécies de anfisbênias ("cobras-de-duas-cabeças") exibem um comportamento de defesa chamado urotomia, que consiste simplesmente em quebrar a cauda para escapar de um predador. Enquanto o predador se distrai com a cauda quebrada, a anfisbênia foge em segurança. Talvez você já tenha ouvido esse papo antes, ou até visto isso ocorrendo, não com uma anfisbênia, mas com uma lagartixa. É que muitos lagartos também são capazes de quebrar a própria cauda. A diferença é que neles uma cauda nova é regenerada, enquanto nas anfisbênias, não. Uma anfisbênia, portanto, pode quebrar sua própria cauda para fugir de um predador uma única vez na vida, ao contrário de lagartos e lagartixas.
Será que alguns fatores podem ter relação com a quebra da cauda em anfisbênias? Pensando nisso, resolvemos (Jhonny Guedes [UFG], eu e Mário Moura [UFPB]) investigar o assunto, usando como modelo uma espécie de anfisbênia chamada Amphisbaena vermicularis, habitante de praticamente todo o nordeste e centro-oeste do Brasil, além de algumas porções do sudeste e norte brasileiro, e de parte da Bolívia.
Mapa com os pontos de registro dos exemplares de Amphisbaena vermicularis examinados no estudo. Em vermelho, exemplares com a cauda quebrada e em azul os exemplares com cauda íntegra.
Para realizar o estudo, publicado na revista científica Ecology and Evolution, nós examinamos quase 400 exemplares desta espécie depositados em coleções biológicas e observamos se a cauda estava quebrada e cicatrizada (indicativo de que aquele indivíduo realizou urotomia durante a vida) ou estava íntegra (ou seja, nunca fez urotomia). Caso a cauda estivesse quebrada, mas não cicatrizada, o indivíduo era desconsiderado, pois não teríamos como saber se a quebra ocorreu após a coleta, durante o manuseio do material na coleção, por exemplo.
Primeiro, nós descobrimos que a chance de quebrar a cauda não difere entre machos e fêmeas. Mas, quanto maior o indivíduo, maiores as chances de ter perdido a cauda. A causa mais provável para isso é que indivíduos maiores são mais velhos, portanto, com mais probabilidade de já terem se deparado com um predador e recorrido à quebra da cauda para escaparem com vida. Foi observado também que os indivíduos de localidades com temperatura média maior têm mais chance de quebrarem a cauda, enquanto os de localidades onde chove mais tendem menos. Por quê? Não dá para ter certeza, mas a hipótese é de que em regiões mais quentes as anfisbênias são mais ativas, o que pode aumentar a chance de dar de cara com um predador e perder a cauda (aqui cabe um parêntese: é sabido que os indivíduos de Amphisbaena vermicularis deslocam-se não apenas no subsolo, mas na superfície também). Já em regiões onde chove com mais intensidade, as anfisbênias são obrigadas a subir à superfície quando suas galerias subterrâneas inundam, o que também as deixa mais expostas a predadores, mas com mais chances de perder a vida ao invés de apenas a cauda. Essa diferença sutil pode ser porque, durante chuvas fortes, as anfisbênias vêm à superfície em um momento em que estão menos aptas a fugir dos predadores e acabam devoradas. As anfisbênias são um dos grupos de répteis menos estudados no mundo. Das cerca de 200 espécies conhecidas, umas 80 ocorrem no Brasil, mas sabemos ainda muito pouco sobre a biologia delas. Estudos como este, apesar de simples, nos ajudam a preencher algumas lacunas de conhecimento básico sobre esses animais de hábitos subterrâneos, além de ressaltar a importância das coleções biológicas no avanço científico.
Uma anfisbênia da espécie Amphisbaena heterozonata sendo devorada por uma maria-faceira (Syrigma sibilatrix) em um dia de chuva. Fonte: Revista Brasileira de Ornitologia, 23(4), 2015.
Um pequeno adendo
O título do artigo científico aqui citado é "A new tale of lost tails" ("Um novo conto sobre caudas perdidas"). Além do trocadilho em inglês o "novo" ali faz referência a um estudo anterior que publicamos em 2014, sobre a quebra da cauda em duas espécies de serpentes, Drymoluber brazili e D. dichrous. Assim como as anfisbênias, algumas serpentes podem perder cauda para se defender, a qual também não se regenera. Naquele estudo, encontramos que a chance de uma cobra perder parte da cauda aumenta à medida em que o indivíduo cresce (e fica mais velho). Na época, a Ciência Hoje das Crianças publicou uma matéria sobre este estudo, escrita por Marcelo Garcia: http://chc.org.br/com-a-cauda-na-mao/
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AutorHenrique C. Costa Histórico
January 2024
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