O ambiente em que uma espécie vive define o alimento que ela terá disponível. E populações diferentes de uma mesma espécie podem ter dietas distintas justamente por essa influência ambiental. Peguemos o exemplo de duas cadeias de montanhas do sudeste do Brasil: alguns estudos mostram que a Serra do Mar tem maior riqueza de plantas e de artrópodes que a Serra da Mantiqueira. E artrópodes (insetos, aranhas, lacraias etc.) estão entre as principais presas de anfíbios anuros (sapos, rãs e pererecas). E aí nos veio a questão...
Uma espécie de rã encontrada tanto na Serra do Mar quanto na Serra da Mantiqueira tem a mesma dieta nesses ambientes diferentes? Como modelo para responder a esta pergunta nós escolhemos a rã-das-pedras (Thoropa miliaris), uma espécie comum que vive em ambientes rochosos na Mata Atlântica.
Rã-das-pedras (Thoropa miliaris). Foto: Henrique Costa
Liderados pelo então mestrando Henrique José Oliveira, sob minha orientação e coorientação do amigo Diego José Santana (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul), foram coletados exemplares de rã-das-pedras em cinco localidades da Serra do Mar (Rio de Janeiro) e cinco da Serra da Mantiqueira (Minas Gerais), para examinarmos seu conteúdo estomacal e sabermos o que as rãs comem em cada serra.
Para conhecermos a diversidade de artrópodes disponíveis no ambiente em que as rãs vivem, foram instaladas armadilhas que nada mais eram que pequenos potes enterrados no chão, onde esses bichinhos caíam. Também foram coletadas amostras da serapilheira, a folhagem seca das árvores que cobre o chão da floresta e abriga muitos artrópodes. Por fim, o que descobrimos? Como esperado, encontramos mais tipos de artrópodes na Serra do Mar que na Serra da Mantiqueira e observamos que a as rãs da Serra do Mar comem uma variedade maior de artrópodes. Porém, nas duas serras o principal alimento das rãs-das-pedras são formigas! Ou seja, mesmo havendo uma grande variedade de presas potenciais, que às vezes são de fato ingeridas, as rãs-das-pedras gostam mesmo é de formigas. Encontramos 15 gêneros de formigas na sua dieta, especialmente os gêneros Odontomachus e Solenopsis, que não fazem colônias em ambientes rochosos e forrageiam no chão da mata. Isso sugere que as rãs-das-pedras deixam seus sítios de reprodução para procurar formigas no chão da floresta. Outro ponto interessante é que estudos anteriores indicam que duas rãs da mesma família (uma delas do mesmo gênero) da rã-das-pedras, Thoropa taophora e Cycloramphus brasiliensis também parecem preferir se alimentar de formigas. Será que toda a família dos cicloranfídeos (Cycloramphidae), à qual a rã-das-pedras pertence, tem esse hábito? A pergunta fica aberta à investigação, pois a dieta de 34 espécies de rãs desta família ainda é desconhecida! Esta pesquisa, intitulada Trophic ecology of Thoropa miliaris (Anura: Cycloramphidae) in two mountain ranges of south-eastern Brazil (Ecologia trófica de Thoropa miliaris (Anura: Cycloramphidae) em duas cadeias de montanhas do sudeste do Brasil) foi publicada na revista científica Austral Ecology e pode ser acessada no link a seguir: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1111/aec.13316
Dieta da rã-das-pedras na Serra do Mar e Serra da Mantiqueira. Barras à direita indicam presas selecionadas pelas rãs. Barras à esquerda indicam presas recusadas (disponíveis no ambiente, mas não consumidas). As barras mais longas representam as formigas (Formicidae). Fonte: Oliveira et al. (2023)
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As aves estão entre as maiores predadoras de serpentes. Um estudo recente registrou no Brasil 31 espécies de aves que se alimentam eventualmente ou frequentemente de serpentes. Uma das mais populares é o acauã (Herpetotheres cachinnans). Uma década atrás eu e alguns colegas fizemos uma extensa revisão da dieta deste gavião especialista em devorar répteis, particularmente lagartos e serpentes, incluindo espécies peçonhentas.
Já em 2022, Vanessa Nocelli, Lúcio Lima e eu publicamos uma nota curta relatando a predação de uma serpente fossorial (Elapomorphus quinquelineatus) por um falcão-relógio (Micrastur semitorquatus). Esta serpente é nativa da Mata Atlântica do sudeste brasileiro, ocorrendo principalmente em ambientes florestados, onde rasteja sob as folhas caídas no chão ou em cavidades no solo. Seu principal alimento são as anfisbenas (cobras-de-duas-cabeças). Já o falcão-relógio pode ser encontrado dos EUA à Argentina e se alimenta de mamíferos, répteis e outras aves. Enquanto dirigia dentro da Reserva Particular do Patrimônio Natural Chapadão da Serra Negra (MG), de sua propriedade, Lúcio avistou o falcão atacando a serpente. A ave pressionava com os pés a cobra contra o solo, enquanto desferia bicadas. Mas, talvez assustado com o som do automóvel parado, o falcão levantou voo e deixou a presa morta no chão. Lúcio coletou a serpente e a levou à UFJF, onde foi incorporada à coleção científica de répteis. Na sequência, Vanessa liderou uma busca por registros de predação envolvendo a serpente Elapomorphus quinquelineatus, usando o Google Scholar, WikiAves e as edições de uma tradicional revista que publica notas de história natural, Herpetological Review. Até o momento, E. quinquelineatus havia sido registrada como presa de outras duas serpentes, a falsa-coral Erythrolamprus aesculapii e a coral-verdadeira Micrurus frontalis, especialistas em se alimentar de animais serpentiformes. Este foi, portanto, o primeiro registro de E. quinquelineatus como presa de uma ave. Uma contribuição simples, mas que preenche mais uma pequena lacuna de conhecimento sobre a biologia da nossa fauna. O trabalho foi publicado em revista científica Heringeriana e pode ser acessado pelo link a seguir: https://revistas.jardimbotanicodf.org/index.php/heringeriana/article/view/918008/290
Serpente Elapomorphus quinquelineatus (fura-terra-grande-de-cinco-linhas), morta por um Micrastur semitoquatus (gavião-relógio).
Em um estudo publicado na revista científica francesa Zoosystema, nós esclarecemos a localidade-tipo do lagartinho brasileiro Ameivula ocellifera e escolhemos um neótipo para a espécie. Mas o que isso significa?
A espécie Ameivula ocellifera foi descrita originalmente em 1825 com o nome Tejus ocellifer pelo pesquisador germânico Johann Baptist von Spix, que percorreu diferentes regiões do Brasil entre os anos de 1817 e 1820. O texto de Spix dizia apenas que a espécie foi encontrada na "Bahia". Em 1877 a espécie passou a se chamar Cnemidophorus ocellifer e, em 2012, Ameivula ocellifera. Ao longo deste período, registros deste lagartinho pipocaram pela América do Sul, mas, nos últimos anos, cientistas notaram que o que vínhamos chamando de Cnemidophorus ocellifer ou Ameivula ocellifera não é uma, mas são várias espécies diferentes. Porém, os exemplares usados por Spix para descrever a espécie em 1825 se perderam após a II Guerra Mundial, e a informação de que foram coletados na "Bahia" é muito vaga. Isso faz com que cientistas se perguntem até mesmo qual população (ou quais populações) de lagartos é o "verdadeiro" Ameivula ocellifera descoberto por Spix? Para resolver esta questão, um time liderado pela Dra. Eliana Oliveira, do qual eu tive a honra de participar, se debruçou sobre a história deste lagartinho simpático. Nossa conclusão (que já havia sido proposta em 1981 por Paulo Vanzolini, usando argumentos distintos) é que Spix teria coletado em Salvador, Bahia os exemplares usados para descrever a espécie. A partir daí, escolhemos um exemplar coletado por membros da equipe em Salvador, como o neótipo, ou seja, o novo exemplar de referência que "carrega o nome" da espécie. Fizemos uma descrição bem minuciosa deste exemplar e material genético dele foi coletado visando estudos futuros. Também apresentamos uma comparação detalhada de como diferenciar o "legítimo" Ameivula ocellifera das outras 10 espécies do seu gênero. O verdadeiro A. ocellifera pode ser encontrado no sudeste da Caatinga (em Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Bahia) e em parte da Mata Atlântica da Bahia, Sergipe e Alagoas. Populações da região central e norte da Caatinga provavelmente são outra espécie, cujo nome precisa ser definido. E registros de A. ocellifera no Norte e Centro-oeste do Brasil representam, na verdade, espécies ainda não descritas ou erros de identificação. A partir do nosso estudo vai ficar "menos difícil" desvendar a evolução deste grupo de lagartinhos e, quem sabe, descrever novas espécies.
O novo exemplar de referência (neótipo) da espécie Ameivula ocellifera, procedente de Salvador, Bahia, e atualmente preservado na Coleção Zoológica de referência da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (ZUFMS-REP 04144). Foto: Ricardo Marques. https://sciencepress.mnhn.fr/en/periodiques/zoosystema/44/19
No segundo semestre de 2022 foi publicado um artigo liderado pelo amigo Mário Moura, sobre os fatores que levam serpentes e anfisbênias ("cobras-de-duas-cabeças") a quebrarem a própria cauda como estratégia defensiva. Eu fui um dos autores do estudo, cuja versão "definitiva" saiu no começo de 2023 (a única diferença entre as versões é a inclusão de dados do fascículo e da paginação no arquivo). Ainda no ano passado, nós publicamos um texto de divulgação sobre este trabalho na Ciência Hoje, em colaboração com Pedro Paz, da Assessoria de Comunicação Social da Universidade Federal da Paraíba (onde Mário estava vinculado durante a maior parte dessa pesquisa). No link a seguir é possível acessar um arquivo PDF com o texto, intitulado "Automutilação como estratégia de sobrevivência".
Cauda de uma serpente da espécie Dendrophidion dendrophis, quebrada. Foto: A. C. M. Dourado. Fonte: scielo.iec.gov.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1981-81142011000200002
O jacaré-do-papo-amarelo é cientificamente chamado de Caiman latirostris. Já a tartaruga-verde é Chelonia mydas. Mas o que esses nomes significam? Qual seria a melhor forma de pronunciá-los? É isso o que eu e o professor Rafael Rigolon, da Universidade Federal de Viçosa, exploramos no artigo "Etimologia e pronúncia dos nomes dos crocodilianos e quelônios do Brasil", publicado na Herpetologia Brasileira, revista online da Sociedade Brasileira de Herpetologia.
Cientistas usam nomes científicos para se referirem às espécies do planeta. A ideia é facilitar a comunicação científica, de maneira que cada espécie tenha um nome único no mundo todo. E esses nomes científicos são regulados por códigos internacionais de nomenclatura, com regras distintas dependendo do grupo de organismos (por exemplo, animais e plantas), como eu conto brevemente no texto Como é feita a escolha dos nomes científicos?, publicado na Ciência Hoje. Investigar o significado dos nomes científicos me fascina. Tanto que, entre 2010 e 2017 eu escrevi uma coluna mensal na Ciência Hoje das Crianças, chamada O nome dos bichos, inteiramente dedicada a isso. Em 2013, o Rafael Rigolon criou no Facebook a página Nomes Científicos, também presente no Instagram. Ele ainda publicou o livro A pronúncia do latim científico, hoje em sua segunda edição. Vira e mexe nós "trocávamos figurinhas" e, durante a pandemia de Covid-19, tivemos a ideia de escrever uma série de artigos sobre a etimologia do nome científico dos répteis do Brasil. Começamos com as tartarugas e jacarés. O próximo trabalho já está quase pronto para submissão e será sobre as anfisbênias brasileiras. Aguardem. :-)
Crédito: Charles J. Sharp / Wikipedia
Por volta de agosto de 2020, em plena pandemia de Covid-19, meu colega Clodoaldo Assis, doutorando em Biologia Animal da Universidade Federal de Viçosa entrou em contato comigo. No ano anterior ele havia coletado durante um trabalho de campo uma anfisbena ("cobra-de-duas-cabeças") da espécie Amphisbaena mertensii que estava sendo predada por uma saracura-três-potes (Aramides cajaneus). Clodoaldo pensava que poderia ser um importante registro de história natural. Então, fomos pesquisar.
Predadores Revisando a literatura científica, descobri que só havia registros de A. mertensii como presa de serpentes. Ou seja, nós tínhamos em mãos o primeiro registro de uma ave se alimentando desta espécie. Como no dia do registro estava chovendo bastante, é bem possível que a anfisbena saiu de seus túneis subterrâneos para não morrer afogada. E, na superfície, encontrou seu destino fatídico no bico da saracura. Mas a história não terminou! Poros Analisando com cuidado o espécime coletado (Clodoaldo não deixou a saracura terminar a refeição), que atualmente está na coleção do Museu de Zoologia João Moojen, da UFV, percebemos que a anfisbena possuía quatro poros antes da cloaca. Esses poros liberam uma secreção serosa com feromônios usados na comunicação química. É assim que as anfisbenas "conversam" e o número de poros varia entre as 200 espécies do mundo e até dentro de uma mesma espécie. Na Amphisbaena mertensii é comum observarmos seis poros, mas alguns indivíduos possuem, cinco, sete, até oito. Mas quatro poros? Este foi mais um achado do nosso trabalho, que amplia o nosso conhecimento sobre a variação morfológica desta espécie.
Amphisbaena mertensii predada por uma saracura-três-potes (Aramides cajaneus). a) vista dorsal; b) vista ventral; c) vista lateral da cabeça; d) cloaca, com setas indicando os quatro poros pré-cloacais.
Recorde de tamanho
E por falar em morfologia, apresentamos também o relato do maior indivíduo de A. mertensii já registrado. Não foi o espécime coletado pelo Clodoaldo, mas um exemplar que eu havia examinado alguns anos antes na coleção do Museu de Ciências Naturais da PUC Minas. O animal, coletado em Araxá, MG, media 45,8 cm, sem contar a cauda, que estava quebrada devido a uma urotomia. O maior exemplar conhecido da espécie até então, media 41 cm. E teve mais... Mapeando registros Para dar um tcham ainda maior ao trabalho, eu sugeri que atualizássemos as informações sobre a distribuição geográfica de A. mertensii, pois as últimas publicações sobre a espécie deixaram de fora alguns registros. Convocamos o Lucas Mendonça, na época estudante de graduação na UFV e estagiário no MZUFV, para ajudar no levantamento e a planilhar os dados. Ao final, encontramos 183 registros publicados da espécie em artigos científicos, para 100 localidades no Brasil, Paraguai e Argentina. O nosso levantamento trouxe duas vezes mais registros que a última publicação sobre a distribuição geográfica de A. mertensii. Dados muito importantes para se entender melhor a biologia deste réptil. E não acabou!
Mapa atualizado com os registros de Amphisbaena mertensii. Pontos brancos: literatura científica; ponto vermelho: registro do espécime predado pela saracura-três-pores; ponto azul: registro do maior indivíduo da espécie; pontos pretos: dois novos registros baseados em material de coleções biológicas.
Uma história confusa
Apesar de termos passado um pente fino na área de ocorrência desta espécie, levantamos um problema que ainda não tem solução. A localidade tipo de Amphisbaena mertensii, ou seja, o local onde foi coletado o exemplar usado para descrever a espécie pela primeira vez (holótipo). Este exemplar, que se encontra hoje na coleção do Instituto Zoológico da Academia Russa de Ciências, teria sido coletado pelo germânico Karl Heinrich Mertens (1796–1830), durante uma longa viagem de circum-navegação entre 1826 e 1829, da qual ele era o naturalista-chefe. Em 1881, o herpetólogo russo Alexander Strauch (1832–1893) descreveu o exemplar coletado por Mertens como uma nova espécie em sua homenagem, Amphisbaena mertensii. O problema é que a única informação oficial sobre a procedência do bicho era "an irgend einem Küstenpunkte Süd Amerikas" ("em algum ponto da costa da América do Sul"). Em 1966, quando Carl Gans (1923–2009) fez um estudo morfológico de dezenas de exemplares de A. mertensii, ele concluiu que o holótipo tinha mais semelhanças morfológicas com outros exemplares coletados no estado de São Paulo. Ou seja, o holótipo teria sido coletado em território paulista. Mas, temos um problema. Analisando artigos e livros antigos sobre a viagem da corveta Seniavine (corveta é um tipo de embarcação), onde Karl Mertens trabalhou, não há relatos de que ela tenha aportado em São Paulo. A Seniavine saiu da Rússia em setembro de 1826 e aportou no Rio de Janeiro em 7 de janeiro de 1827, onde ficou até o final do mês. Mas não há registros de A. mertensii no Rio de Janeiro! E agora? Pode ser que Mertens adquiriu o exemplar de A. mertensii de outra pessoa, que o teria coletado em São Paulo (onde a espécie ocorre); mas não há nada escrito por ele a esse respeito. Ou então, Mertens coletou o bicho no Rio de Janeiro, enquanto a corveta estava no porto; mas este teria sido o único registro, até hoje, dessa espécie em uma das regiões mais pesquisadas do Brasil. Pode também ter havido um erro de catálogo no museu russo (o que não era raro naquele tempo) e o holótipo de A. mertensii não teria nada a ver com Mertens e sua viagem ao redor do mundo. Este "mistério" permanece sem solução.
Holótipo de Amphisbaena mertensii, que teria sido coletado em por Karl Mertens no século XIX. Fonte: Zoological Institute RAS.
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O trabalho detalhando todas essas novidades foi publicado em 2022 na revista científica Caldasia e, além de Clodoaldo, Lucas e eu, conta com coautoria do prof. Renato Feio, orientador dos dois e meu orientador durante a graduação e mestrado.
Olhando no iNaturalist fotos de anfisbênias (as famosas "cobras-de-duas-cabeças", que na verdade são lagartos sem patas), certo dia me deparei com a foto de um animal da Argentina, branco. Seria um indivíduo albino?
Foto de indivíduo da espécie Amphisbaena darwinii da Argentina, disponibilizada no iNaturalist.
Curioso com o registro, entrei em contato com o autor da foto, Mateo Cocimano, que me contou que seu pai encontrou o réptil enquanto mexia no quintal de casa, em Buenos Aires, capital argentina. Mateo fez as fotos e soltou a anfisbena, que depois se enterrou.
Com base no local de registro e em algumas características visíveis nas fotos, o exemplar me pareceu uma Amphisbaena darwinii heterozonata, comum na Argentina, mas que, naturalmente, possui coloração marrom.
Foto de um indivíduo de Amphisbaena darwinii da Argentina, com a coloração típica da espécie, divulgada no iNaturalist.
Mostrei então as fotos ao colega Ricardo Montero, argentino e especialista em anfisbênias. Ricardo bateu o martelo na identificação e afirmou que, entre centenas de exemplares de Amphisbaena darwinii que já viu, nenhum era branco. Minha aluna de mestrado, Carolina Paiva, então entrou em ação fazendo uma revisão de casos de anomalias cromáticas em Amphisbaenia. Incrivelmente, só havia cinco relatos publicados na literatura científica, sendo um caso de albinismo e quatro de piebaldismo (uma condição em que o animal possui partes do corpo sem pigmentação, como se fosse um "vitiligo").
O animal fotografado por Mateo, porém, não era albino, mas amelânico. O albinismo ocorre quando não há nenhum tipo de pigmento na pele e olhos, enquanto no amelanismo não há melanina (pigmento de cor escura, como marrom ou preto), mas há outros pigmentos que dão tons de amarelo, vermelho, etc. No caso da anfisbena branquela, é possível ver que ela possuía um pouco de pigmento amarelado, especialmente na porção mais posterior do corpo e na cauda. Por isso ela não era albina! Este foi o primeiro registro de amelanismo em anfisbênias (Amphisbaenia) e o sexto registro de anomalia cromática no grupo, que publicamos em 2022 na revista científica Cuadernos de Herpetología. O curioso é que as anfisbênias são fossoriais, ou seja, vivem no subsolo e, teoricamente, anomalias cromáticas não seriam desvantajosas a esses animais, ao contrário do que costuma ocorrer com animais que vivem na superfície, que podem perder a camuflagem, atrair menos parceiros ou ter mais problemas com radiação ultravioleta, por exemplo. Mas por que então as anomalias cromáticas são tão raras em Amphisbaenia? Será que há alguma desvantagem desconhecida por nós? Será que essa aparente raridade é um viés de registros? Ou será que algum fator genético torna essas anomalias raras, mesmo não sendo desvantajosas? Essas perguntas seguem sem respostas. Esta história também virou notícia no website Terra da Gente, em reportagem escrita pela jornalista Thais Pimenta: clique aqui para ler.
Eu já postei aqui sobre uma nota de história natural que publicamos em 2021 graças à ciência cidadã, atividade em que cidadãos contribuem com a ciência por meio da coleta ou até da análise de dados. Iniciativas como o WikiAves e o iNaturalist são dois ótimos exemplos de ciência cidadã. Ano passado (2022), encontrei registros publicados no iNaturalist que mereceram uma apresentação à comunidade científica.
Contribuindo com a identificação de registros de répteis do estado de Minas Gerais no iNaturalist, me deparei com fotografias que permitiam a identificação clara de quatro espécies de lagartos em locais que ampliam a sua área de ocorrência conhecida. Isso quer dizer que, graças aos registros do iNaturalist, descobrimos que esses lagartos habitam uma área maior do que sabíamos. São eles: Ameivula cipoensis (um calango raro, endêmico da Serra do Espinhaço, para o qual apresentamos novas localidades de ocorrência); Enyalius capetinga (um lagarto do Cerrado, descrito em 2018, para o qual apresentamos o registro mais oriental de sua presença), Psilops paeminosus (um lagartinho de poucos centímetros, que ocorre de Pernambuco ao norte de Minas Gerais, onde apresentamos seu registro mais meridional) e Tupinambis quadrilineatus (uma espécie de teiú típica do Cerrado, para a qual apresentamos os registros mais meridional e oriental de sua presença).
Espécies de lagartos com registros em Minas Gerais divulgados no iNaturalist que ampliam nosso conhecimento sua área de ocorrência. Em sentido horário do topo à esquerda (ou de do topo à base, se estiver lendo pelo celular): Ameivula cipoensis (foto: Leandro Moraes), Enyalius capetinga (foto: Marcelo Ribeiro), Tupinambis quadrilineatus (foto: Adelton Nascimento) e Psilops paeminosus (foto: João Menezes).
Mapa com registros de ocorrência conhecidos para as quatro espécies de lagartos estudadas. Os pontos vermelhos são novos registros disponibilizados no iNaturalist.
Ciente da importância daqueles registros, entrei em contato com os fotógrafos via iNaturalist, pedindo autorização para reproduzir as imagens em uma revista científica (você pode selecionar no iNaturalist o tipo de licença de uso "creative commons" das fotos que publica na plataforma). Todos concordaram e eu convidei meu então aluno de mestrado, Henrique Oliveira, para redigir uma primeira versão do texto, que eu revisei. Depois, submetemos à revista científica Cuadernos de Herpetología, onde o trabalho foi publicado.
Em maio deste ano publiquei um artigo identificando o local de coleta de alguns répteis de Minas Gerais, especialmente uma espécie de serpente que mais se parece com uma lombriga gigante, a Liotyphlops wilderi. Esse tipo de trabalho é importante para a Taxonomia. Por quê? Acompanhe se quiser entender.
Exemplar de serpente Liotyphlops wilderi coletado em 1879 por John Casper Branner em "São Cyriaco", Minas Gerais.
Quando uma nova espécie é descrita, um (mais comum hoje) ou mais exemplares são escolhidos como "espécime(s) tipo(s)" (holótipo, quando um, ou síntipos, quando mais de um). O espécime tipo é quem "carrega o nome" da espécie. A importância disso é basicamente a seguinte: suponha que uma pesquisa descobre que populações que vínhamos considerando uma única espécie (Aba baba, por exemplo) diferem suficientemente (este "suficientemente" tem uma certa subjetividade) a ponto de poderem ser consideradas duas ou mais espécies distintas. A população/linhagem à qual o espécime tipo pertence mantém o nome Aba baba. As demais receberão outro nome, geralmente um nome novo, criado por quem fez a pesquisa.
Nas últimas décadas, a Taxonomia ganhou uma ferramenta importante: o sequenciamento e análise de material genético. Assim, para além da tradicional morfologia, taxonomistas podem comparar o DNA ou RNA de espécies. Mas, muitos espécimes tipo foram coletados antes do advento da biologia molecular e a preservação (em formol, geralmente) degradou o material genético. Voltando à suposição do parágrafo anterior, imagine que morfologicamente as diferenças entre populações são muito sutis ou imperceptíveis, mas geneticamente elas são claríssimas: é o que chamamos de espécies crípticas. Como definir qual população mantém o nome Aba baba e quais populações receberão um novo nome, se não tivermos material genético do espécime tipo? É aí que entra a localidade tipo. A localidade tipo é o local de coleta do espécime tipo. Uma solução para o problema do parágrafo anterior seria fazer uma expedição à localidade tipo atrás de novos exemplares, chamados "topótipos". O material genético de um ou mais desses topótipos pode servir de "substituto" do material genético do espécime tipo e nos ajudar a definir qual população mantém o nome (imaginário) da espécie Aba baba. Mas... Não é raro que espécies descritas há muito tempo, geralmente há mais de um século, tenham localidade tipo dúbia, pouco detalhada ou até equivocada. Isso ocorre porque as regras de nomenclatura zoológica foram sendo aprimoradas com o tempo e essa coisa de informar a localidade tipo bem detalhada tem menos de um século. Aí o jeito é incorporar o Sherlock Holmes e investigar. E foi isso que eu fiz com relação à tal cobrinha Liotyphlops wilderi. É sabido que os síntipos desta espécie foram coletados por um tal John Casper Branner entre 1878 e 1879 em "São Cyriaco", Minas Gerais. Esta informação está no artigo de 1883 que descreveu a espécie e em um artigo de 1908 que reexamina o material, além dos catálogos do Museu de Zoologia Comparada (Museum of Comparative Zoology) e no Museu Field (Field Museum), ambos nos EUA, onde os espécimes foram depositados. Uai, então é só olhar onde fica essa cidade! Só que não existe cidade com nome de São Cyriaco ou São Ciríaco em MG. Alguns autores corrigiram o nome para Cyriaco, São Cyprião e Cipriano. E agora? Resumidamente, eu fui atrás de informações sobre o coletor, o tal John Casper Branner. Com a internet, as pesquisas ficam bem mais fáceis se você souber procurar pelos termos corretos. Eu encontrei artigos (incluindo biografias) e até jornais do século XIX, tudo digitalizado. E descobri que Branner foi um geólogo renomado que veio algumas vezes ao Brasil. Em uma dessas ocasiões, mais especificamente entre 1879 e 1880, ele trabalhou na São Cyriaco Gold Mining Company of Boston, uma mineradora que atuava em Minas Gerais com autorização do então Império do Brasil. E esta mineradora, segundo os documentos, ficava na vila de Santo Antônio do Rio do Peixe, que depois se tornou um distrito do município de Serro e, em 1962 virou um município próprio, Alvorada de Minas. Eu não consegui saber exatamente onde ficava essa mineradora, mas só o fato de agora sabermos que ela ficava onde hoje é Alvorada de Minas, na Serra do Espinhaço, é digno de nota. Esta informação da localidade tipo ser Alvorada de Minas foi publicada no Atlas das serpentes brasileiras em 2019, do qual sou um dos autores. Mas achei importante detalhar toda a história em um artigo próprio, para não gerar confusão ou dúvidas entre colegas taxonomistas. Agora, se um dia alguém fizer uma análise genética da espécie Liotyphlops wilderi já sabe que o local para se encontrar topótipos é na região de Alvorada de Minas. Para além dessa investigação, em 2019, durante o meu pós-doutorado, eu examinei e reidentifiquei os répteis que Branner coletou em Minas Gerais no século XIX. Este material está em museus dos EUA e encontrei apenas nove dos 18 exemplares catalogados nos museus. Entre eles estão dois síntipos da Liotyphlops wilderi além de espécimes de outras serpentes e lagartos, incluindo uma anfisbena, que foi o motivo de eu me interessar por Branner e me embrenhar nessa história toda. Este exemplar, depositado no Museum of Comparative Zoology, foi coletado por Branner em São Cyriaco (ou seja, Alvorada de Minas) e identificado na década de 1960 por Carl Gans (o maior especialista em Amphisbaenia que se tem notícia) como Amphisbaena prunicolor. Mas esta identificação não fazia muito sentido, pois A. prunicolor ocorre principalmente no Sul do Brasil. Ao reexaminar o bichinho eu cheguei a outra conclusão: trata-se de uma Amphisbaena metallurga, espécie que eu descrevi com colegas em 2015 com base em exemplares coletados em Conceição do Mato Dentro, cidade vizinha a Alvorada de Minas! No fim das contas, resolvi dois problemas: onde ficava a tal "São Cyriaco" e a identidade da anfisbena que foi coletada por lá. Bão demais!
Amphisbaena metallurga coletada pro Branner em São Cyriaco (Alvorada de Minas), mais de 135 anos antes da espécie ser descrita por mim e outros colegas.
Continuando com a breve história das minhas férias de outubro de 2021 em Campo Grande (MS), vamos à outra descoberta, mais inesperada que a anterior.
Certo dia, Thomaz Sinani, técnico da coleção zoológica da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, e Roullien Silva, aluno de graduação em Ciências Biológicas na UFMS, encontraram um quero-quero (Vanellus chilensis) atacando um animal serpentiforme em um gramado em plena cidade. Ao se aproximarem para ver que tipo de bicho era a presa, os dois acabaram espantando o quero-quero, que abandonou seu almoço: uma anfisbena. Os dois coletaram a anfisbena morta (parênteses: não precisa de autorização para coletar animais mortos) e levaram para a UFMS. Coincidentemente, eu estava na UFMS naquele dia e vi o animal. Era uma Amphisbaena roberti, espécie descrita pelo pesquisador estadunidense Carl Gans em 1964, cuja distribuição geográfica vai do Tocantins ao Paraná, com alguns registros também no Paraguai, em áreas de Cerrado, Mata Atlântica e Chaco. Com o auxílio do meu aluno de mestrado, Henrique Oliveira, nós fizemos uma revisão bibliográfica dos registros de ocorrência de A. roberti e dos registros de predação envolvendo a espécie. Publicamos na revista Reptiles & Amphibians um mapa atualizado da sua distribuição, onde mostramos que o registro em Campo Grande preenchia uma lacuna de 700 km entre as duas localidades mais próximas com presença confirmada da espécie. Também descobrimos que só duas espécies de serpentes já haviam sido reportadas como predadoras de Amphisbaena roberti. Ou seja, o registro do ataque pelo quero-quero é o primeiro a confirmar uma ave como predadora dessa anfisbena. Ótimas e inesperadas descobertas durante as férias!
Indivíduo de Amphisbaena roberti atacado por um quero-quero em Campo Grande, MS.
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AutorHenrique C. Costa Histórico
January 2024
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