Olhando no iNaturalist fotos de anfisbênias (as famosas "cobras-de-duas-cabeças", que na verdade são lagartos sem patas), certo dia me deparei com a foto de um animal da Argentina, branco. Seria um indivíduo albino?
Foto de indivíduo da espécie Amphisbaena darwinii da Argentina, disponibilizada no iNaturalist.
Curioso com o registro, entrei em contato com o autor da foto, Mateo Cocimano, que me contou que seu pai encontrou o réptil enquanto mexia no quintal de casa, em Buenos Aires, capital argentina. Mateo fez as fotos e soltou a anfisbena, que depois se enterrou.
Com base no local de registro e em algumas características visíveis nas fotos, o exemplar me pareceu uma Amphisbaena darwinii heterozonata, comum na Argentina, mas que, naturalmente, possui coloração marrom.
Foto de um indivíduo de Amphisbaena darwinii da Argentina, com a coloração típica da espécie, divulgada no iNaturalist.
Mostrei então as fotos ao colega Ricardo Montero, argentino e especialista em anfisbênias. Ricardo bateu o martelo na identificação e afirmou que, entre centenas de exemplares de Amphisbaena darwinii que já viu, nenhum era branco. Minha aluna de mestrado, Carolina Paiva, então entrou em ação fazendo uma revisão de casos de anomalias cromáticas em Amphisbaenia. Incrivelmente, só havia cinco relatos publicados na literatura científica, sendo um caso de albinismo e quatro de piebaldismo (uma condição em que o animal possui partes do corpo sem pigmentação, como se fosse um "vitiligo").
O animal fotografado por Mateo, porém, não era albino, mas amelânico. O albinismo ocorre quando não há nenhum tipo de pigmento na pele e olhos, enquanto no amelanismo não há melanina (pigmento de cor escura, como marrom ou preto), mas há outros pigmentos que dão tons de amarelo, vermelho, etc. No caso da anfisbena branquela, é possível ver que ela possuía um pouco de pigmento amarelado, especialmente na porção mais posterior do corpo e na cauda. Por isso ela não era albina! Este foi o primeiro registro de amelanismo em anfisbênias (Amphisbaenia) e o sexto registro de anomalia cromática no grupo, que publicamos em 2022 na revista científica Cuadernos de Herpetología. O curioso é que as anfisbênias são fossoriais, ou seja, vivem no subsolo e, teoricamente, anomalias cromáticas não seriam desvantajosas a esses animais, ao contrário do que costuma ocorrer com animais que vivem na superfície, que podem perder a camuflagem, atrair menos parceiros ou ter mais problemas com radiação ultravioleta, por exemplo. Mas por que então as anomalias cromáticas são tão raras em Amphisbaenia? Será que há alguma desvantagem desconhecida por nós? Será que essa aparente raridade é um viés de registros? Ou será que algum fator genético torna essas anomalias raras, mesmo não sendo desvantajosas? Essas perguntas seguem sem respostas. Esta história também virou notícia no website Terra da Gente, em reportagem escrita pela jornalista Thais Pimenta: clique aqui para ler.
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Eu já postei aqui sobre uma nota de história natural que publicamos em 2021 graças à ciência cidadã, atividade em que cidadãos contribuem com a ciência por meio da coleta ou até da análise de dados. Iniciativas como o WikiAves e o iNaturalist são dois ótimos exemplos de ciência cidadã. Ano passado (2022), encontrei registros publicados no iNaturalist que mereceram uma apresentação à comunidade científica.
Contribuindo com a identificação de registros de répteis do estado de Minas Gerais no iNaturalist, me deparei com fotografias que permitiam a identificação clara de quatro espécies de lagartos em locais que ampliam a sua área de ocorrência conhecida. Isso quer dizer que, graças aos registros do iNaturalist, descobrimos que esses lagartos habitam uma área maior do que sabíamos. São eles: Ameivula cipoensis (um calango raro, endêmico da Serra do Espinhaço, para o qual apresentamos novas localidades de ocorrência); Enyalius capetinga (um lagarto do Cerrado, descrito em 2018, para o qual apresentamos o registro mais oriental de sua presença), Psilops paeminosus (um lagartinho de poucos centímetros, que ocorre de Pernambuco ao norte de Minas Gerais, onde apresentamos seu registro mais meridional) e Tupinambis quadrilineatus (uma espécie de teiú típica do Cerrado, para a qual apresentamos os registros mais meridional e oriental de sua presença).
Espécies de lagartos com registros em Minas Gerais divulgados no iNaturalist que ampliam nosso conhecimento sua área de ocorrência. Em sentido horário do topo à esquerda (ou de do topo à base, se estiver lendo pelo celular): Ameivula cipoensis (foto: Leandro Moraes), Enyalius capetinga (foto: Marcelo Ribeiro), Tupinambis quadrilineatus (foto: Adelton Nascimento) e Psilops paeminosus (foto: João Menezes).
Mapa com registros de ocorrência conhecidos para as quatro espécies de lagartos estudadas. Os pontos vermelhos são novos registros disponibilizados no iNaturalist.
Ciente da importância daqueles registros, entrei em contato com os fotógrafos via iNaturalist, pedindo autorização para reproduzir as imagens em uma revista científica (você pode selecionar no iNaturalist o tipo de licença de uso "creative commons" das fotos que publica na plataforma). Todos concordaram e eu convidei meu então aluno de mestrado, Henrique Oliveira, para redigir uma primeira versão do texto, que eu revisei. Depois, submetemos à revista científica Cuadernos de Herpetología, onde o trabalho foi publicado.
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AutorHenrique C. Costa Histórico
January 2024
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