Em 2019, durante meu pós-doutorado na Universidade Federal de Viçosa, consegui uma bolsa do Field Museum, em Chicago, para examinar espécimes da coleção de répteis, particularmente anfisbênias (lá existe uma das maiores coleções deste grupo no mundo, pois o museu adquiriu a coleção particular de Carl Gans (1923-2009), maior "anfisbeniólogo" da história). Ao trabalhar na coleção, percebi que havia um potinho com pequenos fragmentos de uma anfisbênia africana, Zygaspis quadrifrons. Segundo o catálogo da coleção, os restos foram retirados do estômago de um lagarto da espécie Mochlus sundevallii, coletado na Zâmbia em 1964!
Zygaspis quarifrons (à esquerda ou acima), uma anfisbênia nativa de boa parte da África (da Rep. Democrática do Congo à África do Sul), e Mochlus sundevallii (à direita ou abaixo), lagarto de membros reduzidos, ocorrente do leste ao sudoeste africano.
O calango predador encontra-se diafanizado (um processo de estudo onde a pele é retirada e, por meios químicos, os músculos ficam transparentes e os ossos coloridos) e não foi possível examiná-lo. Mas os restos da anfisbênia foram suficientes para garantir uma identificação inequívoca da espécie. Então, eu me juntei aos colegas Joshua Mata (Field Museum) e Luis Ceríaco (Universidade de Lisboa), para investigar melhor o assunto, que rendeu uma nota científica na revista Reptiles & Amphibians, da Universidade do Kansas.
Restos da anfisbênia retirados do estômago do lagarto. Os números indicam escamas cuja presença e disposição permitem a identificação do exemplar como uma Zygaspis quadrifrons. Entre a primeira e a segunda foto, a parte anterior da cabeça do espécime simplesmente se soltou. Fonte: Costa et al. (2022).
Tanto Zygaspis quadrifons quanto Mochlus sundevallii são encontrados em ambientes com solo arenoso, e frequentemente entram em cupinzeiros para se alimentarem. Então, um encontro entre as duas espécies não é improvável. A dieta dos indivíduos de M. sundevallii geralmente é composta por invertebrados, mas, aparentemente, as anfisbênias também podem entrar no cardápio. Este foi o primeiro registro publicado de uma interação entre essas duas espécies e o primeiro registro de uma anfisbênia como presa do M. sundevallii. E, veja só, graças a material coletado em 1964 e preservado em uma coleção científica.
0 Comments
Em fevereiro de 2022 foi publicada a atualização da lista de répteis do Brasil, na Herpetologia Brasileira, revista da Sociedade Brasileira de Herpetologia. "Ué, mas consta dezembro de 2021 no trabalho!". A verdade é que fechamos a lista em janeiro de 2022, o que atrasou a publicação do fascículo da revista.
Pouco depois da publicação, a "nova lista" ganhou destaque no site do Terra da Gente e no jornalístico Bom Dia Cidade, além dos portais da UFJF e UEMA. Eu também postei um apanhado geral sobre a lista no Twitter, mas acabei deixando o "blog de memórias" de fora, por causa da famosa "falta de tempo". Novidades Seguindo a últimas edições, a nova lista continua apresentando notas nomenclaturais (por exemplo, se uma espécie mudou de gênero, se uma subespécie foi elevada a espécie ou se descobrimos que a autoria ou a data de publicação de um nome vinha sendo citado erroneamente), detalhando os táxons incluídos (citando a fonte e se foi uma nova descrição, revalidação ou primeiro registro no Brasil) e os táxons excluídos (citando a fonte e se, por exemplo, foi uma reidentificação de material testemunho ou sinonímia entre táxons). Novamente, há textos sobre registros duvidosos e registros invalidados para alguma unidade federativa brasileira. E a primeira novidade: detalhamos os registros adicionados em unidades federativas. Listar e comentar tudo isso dá um enorme trabalho e foi um dos motivos da demora de quase 4 anos para publicação da lista (a última edição data de março de 2018). Mas, não foi só isso. Entre uma lista e outra eu passei pelo final do doutorado, entrei no pós-doutorado, depois fui aprovado em concurso para professor na UFJF e ainda veio a pandemia de covid-19. Renato Bérnils também teve suas questões pessoais e profissionais. Decidimos que era o momento de aumentar o time e chamar alguém que pudesse nos ajudar nesta empreitada. Convidamos a colega Thais Guedes, então professora e pesquisadora na Universidade Estadual do Maranhão. Thais chegou com ótimas ideias e botou a mão na massa, especialmente na construção da introdução do texto, na concepção e preparação de todas as figuras, o que trouxe não só qualidade, mas também um atrativo visual para o longuíssimo texto. A lista publicada tem nada menos que 170 páginas, incluindo seis figuras e quatro tabelas, duas delas imensas (uma listando os répteis de cada unidade federativa, e a outra trazendo o "nome completo" de cada táxon, o que inclui seu autor e ano de descrição). As figuras apresentam graficamente informações importantes, como o aumento do número de espécies de répteis do Brasil desde a primeira lista compilada pelo Renato Bérnils em 2005 até a nova lista, e de 1758 (início oficial da taxonomia) até a nova lista; a riqueza de espécies e subespécies de répteis (e de quelônios, jacarés, anfisbênias, lagartos e serpentes separadamente) para cada um dos 26 estados mais o Distrito Federal; a riqueza de espécies endêmicas em cada unidade federativa, incluindo o número de espécies endêmicas de cada unidade federativa; a procedência do holótipo de cada uma das novas espécies descritas desde 2018 e cujo holótipo foi depositado no Brasil; e a porcentagem de espécies ameaçadas, de acordo com o Ministério do Meio Ambiente. Números* A lista anterior (2018) contabilizou 795 espécies de répteis. A nova lista contou, até dezembro de 2021, 848 espécies de répteis no Brasil, sendo 38 espécies de quelônios (tartarugas, cágados, jabutis), 6 de jacarés, 292 de lagartos, 82 de anfisbênias e 430 de serpentes. Nosso país tem a 3ª fauna de répteis mais rica do mundo, atrás apenas da Austrália (1121 espécies) e do México (995 espécies). A região Norte tem a maior riqueza geral de répteis do Brasil. São 450 espécies. Também tem mais serpentes e lagartos. Mas a região Centro-oeste é a única com as seis espécies de jacarés, enquanto a Nordeste possui mais anfisbênias ("cobras-de-duas-cabeças"). Se analisarmos cada unidade federativa (26 estados e o DF), Mato Grosso é campeão. São 292 espécies lá (mais do que toda a região Sul). Por que será? Além de ser um estado grande em área, o Mato Grosso tem Amazônia, Cerrado e Pantanal, ou seja, grande diversidade de ambientes. Bahia e Pará seguem em 2º e 3º lugar, com 277 e 276 espécies de répteis, respectivamente. Além da grande área, a Bahia tem Caatinga, Cerrado e Mata Atlântica, enquanto o Pará tem diferentes "tipos" de Amazônia (florestas de terra firma, alagáveis, mais densas, menos densas...). Se considerarmos os grupos de répteis separadamente, temos padrões distintos. Por exemplo, o Pará é campeão em espécies quelônios, Mato Grosso e Rondônia têm mais espécies de jacarés, Bahia tem mais lagartos e anfisbênias, e o Mato Grosso tem mais espécies de serpentes. Outro dado bem interessante é que das 848 espécies de répteis do Brasil, 399 (47%) são endêmicas, ou seja, só existem aqui. Proporcionalmente, o grupo com mais espécies endêmicas é o das anfisbênias, com 79% das espécies brasileiras exclusivas daqui. E onde estão as espécies de répteis endêmicas do Brasil? A Bahia tem 168 delas, seguida por Minas Gerais (136) e São Paulo (89). Mas dessas 168 espécies endêmicas do Brasil que ocorrem na Bahia, 46 são exclusivamente baianas! Nenhum outro estado chega perto! Por isso, brincamos que a Bahia é a "Austrália brasileira", por causa da diversidade de répteis que só existe lá. Por que isso acontece? Provavelmente porque a Bahia tem muito lugar especial que favoreceu a evolução de espécies, como as dunas do São Francisco e a Chapada Diamantina. Desde a última versão da lista, algumas espécies de países vizinhos foram encontradas pela 1ª vez no Brasil, perto da fronteira. Mas a maioria dos acréscimos da lista foi de espécies novas, descritas por cientistas. Foram 50! Dessas, o 45 têm o Brasil como "localidade tipo". Será que ainda existem novas espécies de répteis a serem descobertas no Brasil? Sim! Um estudo de 2021 aponta nosso país como prioritário para descoberta de novas espécies de répteis. Apesar dessa riqueza toda de répteis no Brasil, 80 espécies eram consideradas ameaçadas de extinção quando a lista foi publicada (uma nova "lista vermelha" foi divulgada em junho de 2022, listando 71 espécies de répteis como ameaçados). E caso você esteja se perguntando qual a importância de sabermos isso tudo, a resposta simples é: a Política Nacional da Biodiversidade tem como um dos seus objetivos a "caracterização e classificação da biodiversidade brasileira" * Trecho adaptado de informações da minha própria autoria, publicados no Twitter. Futuro Pouco depois que uma versão da lista de répteis é publicada, eu começo a receber perguntas sobre quando uma nova edição será lançada. E a resposta geralmente é algo como "não sei, mas espero que dentro de um ano". Afinal, o trabalho da lista é grande e demanda tempo e atenção. E conciliar esta tarefa com o cargo de professor/pesquisador universitário no Brasil não é moleza. Por que não convidamos mais pessoas para ajudar? Eu posso mudar de opinião futuramente, mas hoje eu penso que a lista de répteis funciona bem com poucas pessoas trabalhando nela, porque chegamos a consensos de forma mais fácil e conseguimos dividir tarefas de forma mais eficaz. O que posso adiantar sobre o futuro da lista é: 1) depois de mais de 15 anos como coautor da lista (e à frente dela de 2005 a 2011), Renato Bérnils tomou a decisão de deixar o time; 2) já temos outra pessoa colaborando; 3) estamos conversando com a Sociedade Brasileira de Herpetologia para viabilizarmos uma lista mais dinâmica, seja no site da SBH ou em um site paralelo, onde atualizações serão divulgadas o quanto antes; 4) não sou utópico e acho difícil divulgarmos uma nova lista ainda em 2022.
Riqueza de répteis por Unidades Federativas do Brasil. Margem superior: todos os répteis [espécies (espécies+subespécies)]. Margem inferior: espécies registradas para os cinco grupos distintos de répteis (Testudines, Crocodylia, Amphisbaenia, Lagartos e Serpentes).
"Carcará
Pega, mata e come" Chico Buarque
Se encontrar uma anfisbena em campo já não é fácil, encontrar uma anfisbena sendo predada é ainda menos usual. Conseguir um bom registro fotográfico então, é para poucos. Mas o amigo Fernando Leal é um desses caras. Fernando dirigia por uma estrada não pavimentada em Mariana, Minas Gerais, quando notou um carcará (Caracara plancus) voando com um animal serpentiforme nas garras e, em seguida, pousando sobre o mourão de uma cerca. Fernando parou o carro, foi atrás da ave e conseguiu uma foto excelente de predador e presa. O carcará havia capturado uma anfisbena, mais especificamente uma Amphisbaena alba, a maior (e uma das mais comuns) espécie de anfisbênios do Brasil, podendo medir mais de 80 cm de comprimento.
Carcará e sua presa, uma anfisbena (Amphisbaena alba). Foto: Fernando Leal.
Assustado com a repentina aproximação do Fernando, o carcará bateu asas e foi embora, deixando o almoço para trás. A anfisbena, que media 40 cm, ainda estava viva (e brava), embora fatalmente ferida. Sua cauda foi dilacerada pelo falcão. Muito provavelmente o carcará confundiu a cauda da anfisbena com a cabeça, uma vez que ambas têm formato similar. A Amphisbaena alba tem, inclusive, o comportamento de erguer o rabo quando ameaçada, desferindo uma mordida no eventual predador enquanto este ataca a cauda "pensando" ser a cabeça do réptil. Contudo, a estratégia certamente não funcionou contra o carcará.
Amphisbaena alba seriamente ferida após o ataque do carcará. Foto: Fernando Leal.
Não chovia naquele dia nem havia chovido no dia anterior, e as anfisbenas têm hábitos fossoriais, ou seja, vivem no subsolo. Então, como o carcará capturou o réptil? O fato é que algumas anfisbenas eventualmente rastejam na superfície. Este comportamento parece ser mais comum nas espécies com mais pigmentação dorsal, como é o caso da A. alba. Então, provavelmente a "cobra-de-duas-cabeças" estava se deslocando sobre o solo naquela manhã, quando foi surpreendida pela ave de rapina. Péssima hora em que resolveu "dar um rolezinho".
Agora, onde eu entro nessa história toda? O Fernando me enviou uma mensagem e as fotos do flagrante. Eu conversei com uma aluna do meu laboratório, Nathália Ribeiro Honório, que topou fazer algumas buscas online sobre o possível ineditismo do registro. Usando palavras-chave em português, espanhol e inglês, ela buscou por publicações científicas com relatos de predadores de Amphisbaena alba no Google Acadêmico. De 442 trabalhos resultantes da busca, apenas nove traziam informações relevantes para o nosso estudo, e nenhum citava o carcará como predador de A. alba. Nathália também fez uma busca por todas as fotos do WikiAves de carcarás se alimentando. Foram exatamente 2247 fotos e nós analisamos uma a uma. Dessas, 19 mostravam um carcará com uma presa que (potencialmente) era uma anfisbênia, o que indica que esses lagartos ápodes são eventualmente devorados por este falcão. Mas, nenhuma A. alba foi identificada nas fotos (e esta é uma espécie fácil de ser identificada por fotos). Assim, publicamos o registro do Fernando, junto com uma revisão sobre os predadores de Amphisbaena alba na revista Herpetologia Brasileira. Contando com nosso registro, há relatos confirmados de 10 espécies como predadoras de A. alba, principalmente aves e serpentes. Uma nota científica curta e relativamente simples, mas que traz informações importantes sobre a história natural da anfisbena mais comum do Brasil. |
AutorHenrique C. Costa Histórico
January 2024
Categorias |