"Carcará
Pega, mata e come" Chico Buarque
Se encontrar uma anfisbena em campo já não é fácil, encontrar uma anfisbena sendo predada é ainda menos usual. Conseguir um bom registro fotográfico então, é para poucos. Mas o amigo Fernando Leal é um desses caras. Fernando dirigia por uma estrada não pavimentada em Mariana, Minas Gerais, quando notou um carcará (Caracara plancus) voando com um animal serpentiforme nas garras e, em seguida, pousando sobre o mourão de uma cerca. Fernando parou o carro, foi atrás da ave e conseguiu uma foto excelente de predador e presa. O carcará havia capturado uma anfisbena, mais especificamente uma Amphisbaena alba, a maior (e uma das mais comuns) espécie de anfisbênios do Brasil, podendo medir mais de 80 cm de comprimento.
Carcará e sua presa, uma anfisbena (Amphisbaena alba). Foto: Fernando Leal.
Assustado com a repentina aproximação do Fernando, o carcará bateu asas e foi embora, deixando o almoço para trás. A anfisbena, que media 40 cm, ainda estava viva (e brava), embora fatalmente ferida. Sua cauda foi dilacerada pelo falcão. Muito provavelmente o carcará confundiu a cauda da anfisbena com a cabeça, uma vez que ambas têm formato similar. A Amphisbaena alba tem, inclusive, o comportamento de erguer o rabo quando ameaçada, desferindo uma mordida no eventual predador enquanto este ataca a cauda "pensando" ser a cabeça do réptil. Contudo, a estratégia certamente não funcionou contra o carcará.
Amphisbaena alba seriamente ferida após o ataque do carcará. Foto: Fernando Leal.
Não chovia naquele dia nem havia chovido no dia anterior, e as anfisbenas têm hábitos fossoriais, ou seja, vivem no subsolo. Então, como o carcará capturou o réptil? O fato é que algumas anfisbenas eventualmente rastejam na superfície. Este comportamento parece ser mais comum nas espécies com mais pigmentação dorsal, como é o caso da A. alba. Então, provavelmente a "cobra-de-duas-cabeças" estava se deslocando sobre o solo naquela manhã, quando foi surpreendida pela ave de rapina. Péssima hora em que resolveu "dar um rolezinho".
Agora, onde eu entro nessa história toda? O Fernando me enviou uma mensagem e as fotos do flagrante. Eu conversei com uma aluna do meu laboratório, Nathália Ribeiro Honório, que topou fazer algumas buscas online sobre o possível ineditismo do registro. Usando palavras-chave em português, espanhol e inglês, ela buscou por publicações científicas com relatos de predadores de Amphisbaena alba no Google Acadêmico. De 442 trabalhos resultantes da busca, apenas nove traziam informações relevantes para o nosso estudo, e nenhum citava o carcará como predador de A. alba. Nathália também fez uma busca por todas as fotos do WikiAves de carcarás se alimentando. Foram exatamente 2247 fotos e nós analisamos uma a uma. Dessas, 19 mostravam um carcará com uma presa que (potencialmente) era uma anfisbênia, o que indica que esses lagartos ápodes são eventualmente devorados por este falcão. Mas, nenhuma A. alba foi identificada nas fotos (e esta é uma espécie fácil de ser identificada por fotos). Assim, publicamos o registro do Fernando, junto com uma revisão sobre os predadores de Amphisbaena alba na revista Herpetologia Brasileira. Contando com nosso registro, há relatos confirmados de 10 espécies como predadoras de A. alba, principalmente aves e serpentes. Uma nota científica curta e relativamente simples, mas que traz informações importantes sobre a história natural da anfisbena mais comum do Brasil.
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AutorHenrique C. Costa Histórico
January 2024
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