O jacaré-do-papo-amarelo é cientificamente chamado de Caiman latirostris. Já a tartaruga-verde é Chelonia mydas. Mas o que esses nomes significam? Qual seria a melhor forma de pronunciá-los? É isso o que eu e o professor Rafael Rigolon, da Universidade Federal de Viçosa, exploramos no artigo "Etimologia e pronúncia dos nomes dos crocodilianos e quelônios do Brasil", publicado na Herpetologia Brasileira, revista online da Sociedade Brasileira de Herpetologia.
Cientistas usam nomes científicos para se referirem às espécies do planeta. A ideia é facilitar a comunicação científica, de maneira que cada espécie tenha um nome único no mundo todo. E esses nomes científicos são regulados por códigos internacionais de nomenclatura, com regras distintas dependendo do grupo de organismos (por exemplo, animais e plantas), como eu conto brevemente no texto Como é feita a escolha dos nomes científicos?, publicado na Ciência Hoje. Investigar o significado dos nomes científicos me fascina. Tanto que, entre 2010 e 2017 eu escrevi uma coluna mensal na Ciência Hoje das Crianças, chamada O nome dos bichos, inteiramente dedicada a isso. Em 2013, o Rafael Rigolon criou no Facebook a página Nomes Científicos, também presente no Instagram. Ele ainda publicou o livro A pronúncia do latim científico, hoje em sua segunda edição. Vira e mexe nós "trocávamos figurinhas" e, durante a pandemia de Covid-19, tivemos a ideia de escrever uma série de artigos sobre a etimologia do nome científico dos répteis do Brasil. Começamos com as tartarugas e jacarés. O próximo trabalho já está quase pronto para submissão e será sobre as anfisbênias brasileiras. Aguardem. :-)
Crédito: Charles J. Sharp / Wikipedia
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Por volta de agosto de 2020, em plena pandemia de Covid-19, meu colega Clodoaldo Assis, doutorando em Biologia Animal da Universidade Federal de Viçosa entrou em contato comigo. No ano anterior ele havia coletado durante um trabalho de campo uma anfisbena ("cobra-de-duas-cabeças") da espécie Amphisbaena mertensii que estava sendo predada por uma saracura-três-potes (Aramides cajaneus). Clodoaldo pensava que poderia ser um importante registro de história natural. Então, fomos pesquisar.
Predadores Revisando a literatura científica, descobri que só havia registros de A. mertensii como presa de serpentes. Ou seja, nós tínhamos em mãos o primeiro registro de uma ave se alimentando desta espécie. Como no dia do registro estava chovendo bastante, é bem possível que a anfisbena saiu de seus túneis subterrâneos para não morrer afogada. E, na superfície, encontrou seu destino fatídico no bico da saracura. Mas a história não terminou! Poros Analisando com cuidado o espécime coletado (Clodoaldo não deixou a saracura terminar a refeição), que atualmente está na coleção do Museu de Zoologia João Moojen, da UFV, percebemos que a anfisbena possuía quatro poros antes da cloaca. Esses poros liberam uma secreção serosa com feromônios usados na comunicação química. É assim que as anfisbenas "conversam" e o número de poros varia entre as 200 espécies do mundo e até dentro de uma mesma espécie. Na Amphisbaena mertensii é comum observarmos seis poros, mas alguns indivíduos possuem, cinco, sete, até oito. Mas quatro poros? Este foi mais um achado do nosso trabalho, que amplia o nosso conhecimento sobre a variação morfológica desta espécie.
Amphisbaena mertensii predada por uma saracura-três-potes (Aramides cajaneus). a) vista dorsal; b) vista ventral; c) vista lateral da cabeça; d) cloaca, com setas indicando os quatro poros pré-cloacais.
Recorde de tamanho
E por falar em morfologia, apresentamos também o relato do maior indivíduo de A. mertensii já registrado. Não foi o espécime coletado pelo Clodoaldo, mas um exemplar que eu havia examinado alguns anos antes na coleção do Museu de Ciências Naturais da PUC Minas. O animal, coletado em Araxá, MG, media 45,8 cm, sem contar a cauda, que estava quebrada devido a uma urotomia. O maior exemplar conhecido da espécie até então, media 41 cm. E teve mais... Mapeando registros Para dar um tcham ainda maior ao trabalho, eu sugeri que atualizássemos as informações sobre a distribuição geográfica de A. mertensii, pois as últimas publicações sobre a espécie deixaram de fora alguns registros. Convocamos o Lucas Mendonça, na época estudante de graduação na UFV e estagiário no MZUFV, para ajudar no levantamento e a planilhar os dados. Ao final, encontramos 183 registros publicados da espécie em artigos científicos, para 100 localidades no Brasil, Paraguai e Argentina. O nosso levantamento trouxe duas vezes mais registros que a última publicação sobre a distribuição geográfica de A. mertensii. Dados muito importantes para se entender melhor a biologia deste réptil. E não acabou!
Mapa atualizado com os registros de Amphisbaena mertensii. Pontos brancos: literatura científica; ponto vermelho: registro do espécime predado pela saracura-três-pores; ponto azul: registro do maior indivíduo da espécie; pontos pretos: dois novos registros baseados em material de coleções biológicas.
Uma história confusa
Apesar de termos passado um pente fino na área de ocorrência desta espécie, levantamos um problema que ainda não tem solução. A localidade tipo de Amphisbaena mertensii, ou seja, o local onde foi coletado o exemplar usado para descrever a espécie pela primeira vez (holótipo). Este exemplar, que se encontra hoje na coleção do Instituto Zoológico da Academia Russa de Ciências, teria sido coletado pelo germânico Karl Heinrich Mertens (1796–1830), durante uma longa viagem de circum-navegação entre 1826 e 1829, da qual ele era o naturalista-chefe. Em 1881, o herpetólogo russo Alexander Strauch (1832–1893) descreveu o exemplar coletado por Mertens como uma nova espécie em sua homenagem, Amphisbaena mertensii. O problema é que a única informação oficial sobre a procedência do bicho era "an irgend einem Küstenpunkte Süd Amerikas" ("em algum ponto da costa da América do Sul"). Em 1966, quando Carl Gans (1923–2009) fez um estudo morfológico de dezenas de exemplares de A. mertensii, ele concluiu que o holótipo tinha mais semelhanças morfológicas com outros exemplares coletados no estado de São Paulo. Ou seja, o holótipo teria sido coletado em território paulista. Mas, temos um problema. Analisando artigos e livros antigos sobre a viagem da corveta Seniavine (corveta é um tipo de embarcação), onde Karl Mertens trabalhou, não há relatos de que ela tenha aportado em São Paulo. A Seniavine saiu da Rússia em setembro de 1826 e aportou no Rio de Janeiro em 7 de janeiro de 1827, onde ficou até o final do mês. Mas não há registros de A. mertensii no Rio de Janeiro! E agora? Pode ser que Mertens adquiriu o exemplar de A. mertensii de outra pessoa, que o teria coletado em São Paulo (onde a espécie ocorre); mas não há nada escrito por ele a esse respeito. Ou então, Mertens coletou o bicho no Rio de Janeiro, enquanto a corveta estava no porto; mas este teria sido o único registro, até hoje, dessa espécie em uma das regiões mais pesquisadas do Brasil. Pode também ter havido um erro de catálogo no museu russo (o que não era raro naquele tempo) e o holótipo de A. mertensii não teria nada a ver com Mertens e sua viagem ao redor do mundo. Este "mistério" permanece sem solução.
Holótipo de Amphisbaena mertensii, que teria sido coletado em por Karl Mertens no século XIX. Fonte: Zoological Institute RAS.
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O trabalho detalhando todas essas novidades foi publicado em 2022 na revista científica Caldasia e, além de Clodoaldo, Lucas e eu, conta com coautoria do prof. Renato Feio, orientador dos dois e meu orientador durante a graduação e mestrado.
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AutorHenrique C. Costa Histórico
January 2024
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