Em maio deste ano publiquei um artigo identificando o local de coleta de alguns répteis de Minas Gerais, especialmente uma espécie de serpente que mais se parece com uma lombriga gigante, a Liotyphlops wilderi. Esse tipo de trabalho é importante para a Taxonomia. Por quê? Acompanhe se quiser entender.
Exemplar de serpente Liotyphlops wilderi coletado em 1879 por John Casper Branner em "São Cyriaco", Minas Gerais.
Quando uma nova espécie é descrita, um (mais comum hoje) ou mais exemplares são escolhidos como "espécime(s) tipo(s)" (holótipo, quando um, ou síntipos, quando mais de um). O espécime tipo é quem "carrega o nome" da espécie. A importância disso é basicamente a seguinte: suponha que uma pesquisa descobre que populações que vínhamos considerando uma única espécie (Aba baba, por exemplo) diferem suficientemente (este "suficientemente" tem uma certa subjetividade) a ponto de poderem ser consideradas duas ou mais espécies distintas. A população/linhagem à qual o espécime tipo pertence mantém o nome Aba baba. As demais receberão outro nome, geralmente um nome novo, criado por quem fez a pesquisa.
Nas últimas décadas, a Taxonomia ganhou uma ferramenta importante: o sequenciamento e análise de material genético. Assim, para além da tradicional morfologia, taxonomistas podem comparar o DNA ou RNA de espécies. Mas, muitos espécimes tipo foram coletados antes do advento da biologia molecular e a preservação (em formol, geralmente) degradou o material genético. Voltando à suposição do parágrafo anterior, imagine que morfologicamente as diferenças entre populações são muito sutis ou imperceptíveis, mas geneticamente elas são claríssimas: é o que chamamos de espécies crípticas. Como definir qual população mantém o nome Aba baba e quais populações receberão um novo nome, se não tivermos material genético do espécime tipo? É aí que entra a localidade tipo. A localidade tipo é o local de coleta do espécime tipo. Uma solução para o problema do parágrafo anterior seria fazer uma expedição à localidade tipo atrás de novos exemplares, chamados "topótipos". O material genético de um ou mais desses topótipos pode servir de "substituto" do material genético do espécime tipo e nos ajudar a definir qual população mantém o nome (imaginário) da espécie Aba baba. Mas... Não é raro que espécies descritas há muito tempo, geralmente há mais de um século, tenham localidade tipo dúbia, pouco detalhada ou até equivocada. Isso ocorre porque as regras de nomenclatura zoológica foram sendo aprimoradas com o tempo e essa coisa de informar a localidade tipo bem detalhada tem menos de um século. Aí o jeito é incorporar o Sherlock Holmes e investigar. E foi isso que eu fiz com relação à tal cobrinha Liotyphlops wilderi. É sabido que os síntipos desta espécie foram coletados por um tal John Casper Branner entre 1878 e 1879 em "São Cyriaco", Minas Gerais. Esta informação está no artigo de 1883 que descreveu a espécie e em um artigo de 1908 que reexamina o material, além dos catálogos do Museu de Zoologia Comparada (Museum of Comparative Zoology) e no Museu Field (Field Museum), ambos nos EUA, onde os espécimes foram depositados. Uai, então é só olhar onde fica essa cidade! Só que não existe cidade com nome de São Cyriaco ou São Ciríaco em MG. Alguns autores corrigiram o nome para Cyriaco, São Cyprião e Cipriano. E agora? Resumidamente, eu fui atrás de informações sobre o coletor, o tal John Casper Branner. Com a internet, as pesquisas ficam bem mais fáceis se você souber procurar pelos termos corretos. Eu encontrei artigos (incluindo biografias) e até jornais do século XIX, tudo digitalizado. E descobri que Branner foi um geólogo renomado que veio algumas vezes ao Brasil. Em uma dessas ocasiões, mais especificamente entre 1879 e 1880, ele trabalhou na São Cyriaco Gold Mining Company of Boston, uma mineradora que atuava em Minas Gerais com autorização do então Império do Brasil. E esta mineradora, segundo os documentos, ficava na vila de Santo Antônio do Rio do Peixe, que depois se tornou um distrito do município de Serro e, em 1962 virou um município próprio, Alvorada de Minas. Eu não consegui saber exatamente onde ficava essa mineradora, mas só o fato de agora sabermos que ela ficava onde hoje é Alvorada de Minas, na Serra do Espinhaço, é digno de nota. Esta informação da localidade tipo ser Alvorada de Minas foi publicada no Atlas das serpentes brasileiras em 2019, do qual sou um dos autores. Mas achei importante detalhar toda a história em um artigo próprio, para não gerar confusão ou dúvidas entre colegas taxonomistas. Agora, se um dia alguém fizer uma análise genética da espécie Liotyphlops wilderi já sabe que o local para se encontrar topótipos é na região de Alvorada de Minas. Para além dessa investigação, em 2019, durante o meu pós-doutorado, eu examinei e reidentifiquei os répteis que Branner coletou em Minas Gerais no século XIX. Este material está em museus dos EUA e encontrei apenas nove dos 18 exemplares catalogados nos museus. Entre eles estão dois síntipos da Liotyphlops wilderi além de espécimes de outras serpentes e lagartos, incluindo uma anfisbena, que foi o motivo de eu me interessar por Branner e me embrenhar nessa história toda. Este exemplar, depositado no Museum of Comparative Zoology, foi coletado por Branner em São Cyriaco (ou seja, Alvorada de Minas) e identificado na década de 1960 por Carl Gans (o maior especialista em Amphisbaenia que se tem notícia) como Amphisbaena prunicolor. Mas esta identificação não fazia muito sentido, pois A. prunicolor ocorre principalmente no Sul do Brasil. Ao reexaminar o bichinho eu cheguei a outra conclusão: trata-se de uma Amphisbaena metallurga, espécie que eu descrevi com colegas em 2015 com base em exemplares coletados em Conceição do Mato Dentro, cidade vizinha a Alvorada de Minas! No fim das contas, resolvi dois problemas: onde ficava a tal "São Cyriaco" e a identidade da anfisbena que foi coletada por lá. Bão demais!
Amphisbaena metallurga coletada pro Branner em São Cyriaco (Alvorada de Minas), mais de 135 anos antes da espécie ser descrita por mim e outros colegas.
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AutorHenrique C. Costa Histórico
January 2024
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