Toda espécie de ser vivo reconhecida pelos cientistas recebe um nome científico. Para que a descoberta seja "oficial", a descrição da nova espécie precisa ser apresentada em um texto técnico publicado em livro ou em uma revista especializada, seguindo regras de códigos internacionais de nomenclatura. Sendo assim, se um(a) pesquisador(a) possui em mãos um ou mais exemplares de um determinado organismo, e seus estudos indicam se tratar de uma espécie até então desconhecida, ele/ela (às vezes com um ou vários colaboradores) deve preparar uma descrição formal e, claro, escolher um nome científico. Mas, imagine que um cientista descreveu uma espécie A, e algum tempo depois, outro descreveu uma espécie B. Mais tarde, alguém percebe que com base em dados de morfologia e/ou genética, A e B podem, na verdade, ser consideradas uma espécie só. O que fazer? Essa é exatamente a situação com a qual eu me deparei durante uma das etapas do meu doutorado em Zoologia na Universidade Federal de Minas Gerais, enquanto estudava anfisbênias (também conhecidas como cobras-de-duas-cabeças ou ibijara). Em 1995, o zoólogo e sambista Paulo Vanzolini descreveu uma espécie de anfisbênia que chamou de Amphisbaena talisiae. A descrição foi feita com base em um único exemplar encontrado na Serra da Pitomba, próximo à divisa do Mato Grosso com Goiás. Em 2000, uma ex-aluna de Vanzolini, Carolina Castro-Mello, descreveu outra espécie, Amphisbaena mensae, a partir de alguns indivíduos coletados durante o enchimento da barragem da Usina Hidrelétrica de Serra da Mesa, em Goiás. Quase duas décadas depois, examinei o único exemplar de A. talisiae e alguns indivíduos de A. mensae de diferentes localidades, a maioria encontrada depois que a espécie fora descrita. Analisando com cuidado, notei sutis diferenças na morfologia dos exemplares, que na minha opinião seriam resultado de uma variação dentro de uma mesma espécie, ao invés de indicar a existência de duas espécies distintas. Infelizmente não era possível realizar análises genéticas para reforçar essa hipótese, principalmente porque o material usado para descrever as duas espécies havia sido preservado em formol – que degrada o DNA – sem a retirada de um pedacinho de escama, de músculo ou de algum órgão interno, algo usual hoje em dia, mas pouco difundido décadas atrás. Mesmo dispondo apenas de informações sobre a morfologia externa dos bichos – basicamente o número, padrão e formato de escamas, caracteres fundamentais no reconhecimento de espécies de anfisbênias –, eu e dois colaboradores do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (Roberta Graboski e Hussam Zaher) estávamos confiantes em nossos dados de que os exemplares de Amphisbaena talisiae e Amphisbaena mensae fazem parte da mesma espécie. Tínhamos então, segundo as regras de nomenclatura zoológica, um caso de "sinonímia", ou seja, dois nomes científicos que se aplicam à mesma espécie. Para resolver a questão, como diria Arnaldo Cezar Coelho, "a regra é clara": o nome mais antigo tem prioridade sobre o mais novo. É o "Princípio da Prioridade", Artigo 23 do Código Internacional de Nomenclatura Zoológica. Assim, nosso estudo recém-publicado na revista científica Zootaxa aponta que Amphisbaena talisiae e A. mensae são sinônimos, sendo A. talisiae o nome a ser usado de agora em diante para designar exemplares de anfisbênias com determinado conjunto de características morfológicas que detalhamos no trabalho. Além disso, como agora sabemos que A. talisiae é uma espécie mais comum do que pensávamos, sugerimos que seu estado de conservação deixe de ser considerado "com dados insuficientes" e passe para "não ameaçada". Segundo nosso estudo, os nomes Amphisbaena talisiae (A) e Amphisbaena mensae (B) foram atribuídos de forma independente a indivíduos de uma mesma espécie, nativa do Cerrado do Brasil central, que pelas regras de nomenclatura zoológica deve receber o nome mais antigo, no caso, A. talisiae.
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AutorHenrique C. Costa Histórico
January 2024
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