O ambiente em que uma espécie vive define o alimento que ela terá disponível. E populações diferentes de uma mesma espécie podem ter dietas distintas justamente por essa influência ambiental. Peguemos o exemplo de duas cadeias de montanhas do sudeste do Brasil: alguns estudos mostram que a Serra do Mar tem maior riqueza de plantas e de artrópodes que a Serra da Mantiqueira. E artrópodes (insetos, aranhas, lacraias etc.) estão entre as principais presas de anfíbios anuros (sapos, rãs e pererecas). E aí nos veio a questão...
Uma espécie de rã encontrada tanto na Serra do Mar quanto na Serra da Mantiqueira tem a mesma dieta nesses ambientes diferentes? Como modelo para responder a esta pergunta nós escolhemos a rã-das-pedras (Thoropa miliaris), uma espécie comum que vive em ambientes rochosos na Mata Atlântica.
Rã-das-pedras (Thoropa miliaris). Foto: Henrique Costa
Liderados pelo então mestrando Henrique José Oliveira, sob minha orientação e coorientação do amigo Diego José Santana (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul), foram coletados exemplares de rã-das-pedras em cinco localidades da Serra do Mar (Rio de Janeiro) e cinco da Serra da Mantiqueira (Minas Gerais), para examinarmos seu conteúdo estomacal e sabermos o que as rãs comem em cada serra.
Para conhecermos a diversidade de artrópodes disponíveis no ambiente em que as rãs vivem, foram instaladas armadilhas que nada mais eram que pequenos potes enterrados no chão, onde esses bichinhos caíam. Também foram coletadas amostras da serapilheira, a folhagem seca das árvores que cobre o chão da floresta e abriga muitos artrópodes. Por fim, o que descobrimos? Como esperado, encontramos mais tipos de artrópodes na Serra do Mar que na Serra da Mantiqueira e observamos que a as rãs da Serra do Mar comem uma variedade maior de artrópodes. Porém, nas duas serras o principal alimento das rãs-das-pedras são formigas! Ou seja, mesmo havendo uma grande variedade de presas potenciais, que às vezes são de fato ingeridas, as rãs-das-pedras gostam mesmo é de formigas. Encontramos 15 gêneros de formigas na sua dieta, especialmente os gêneros Odontomachus e Solenopsis, que não fazem colônias em ambientes rochosos e forrageiam no chão da mata. Isso sugere que as rãs-das-pedras deixam seus sítios de reprodução para procurar formigas no chão da floresta. Outro ponto interessante é que estudos anteriores indicam que duas rãs da mesma família (uma delas do mesmo gênero) da rã-das-pedras, Thoropa taophora e Cycloramphus brasiliensis também parecem preferir se alimentar de formigas. Será que toda a família dos cicloranfídeos (Cycloramphidae), à qual a rã-das-pedras pertence, tem esse hábito? A pergunta fica aberta à investigação, pois a dieta de 34 espécies de rãs desta família ainda é desconhecida! Esta pesquisa, intitulada Trophic ecology of Thoropa miliaris (Anura: Cycloramphidae) in two mountain ranges of south-eastern Brazil (Ecologia trófica de Thoropa miliaris (Anura: Cycloramphidae) em duas cadeias de montanhas do sudeste do Brasil) foi publicada na revista científica Austral Ecology e pode ser acessada no link a seguir: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1111/aec.13316
Dieta da rã-das-pedras na Serra do Mar e Serra da Mantiqueira. Barras à direita indicam presas selecionadas pelas rãs. Barras à esquerda indicam presas recusadas (disponíveis no ambiente, mas não consumidas). As barras mais longas representam as formigas (Formicidae). Fonte: Oliveira et al. (2023)
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As aves estão entre as maiores predadoras de serpentes. Um estudo recente registrou no Brasil 31 espécies de aves que se alimentam eventualmente ou frequentemente de serpentes. Uma das mais populares é o acauã (Herpetotheres cachinnans). Uma década atrás eu e alguns colegas fizemos uma extensa revisão da dieta deste gavião especialista em devorar répteis, particularmente lagartos e serpentes, incluindo espécies peçonhentas.
Já em 2022, Vanessa Nocelli, Lúcio Lima e eu publicamos uma nota curta relatando a predação de uma serpente fossorial (Elapomorphus quinquelineatus) por um falcão-relógio (Micrastur semitorquatus). Esta serpente é nativa da Mata Atlântica do sudeste brasileiro, ocorrendo principalmente em ambientes florestados, onde rasteja sob as folhas caídas no chão ou em cavidades no solo. Seu principal alimento são as anfisbenas (cobras-de-duas-cabeças). Já o falcão-relógio pode ser encontrado dos EUA à Argentina e se alimenta de mamíferos, répteis e outras aves. Enquanto dirigia dentro da Reserva Particular do Patrimônio Natural Chapadão da Serra Negra (MG), de sua propriedade, Lúcio avistou o falcão atacando a serpente. A ave pressionava com os pés a cobra contra o solo, enquanto desferia bicadas. Mas, talvez assustado com o som do automóvel parado, o falcão levantou voo e deixou a presa morta no chão. Lúcio coletou a serpente e a levou à UFJF, onde foi incorporada à coleção científica de répteis. Na sequência, Vanessa liderou uma busca por registros de predação envolvendo a serpente Elapomorphus quinquelineatus, usando o Google Scholar, WikiAves e as edições de uma tradicional revista que publica notas de história natural, Herpetological Review. Até o momento, E. quinquelineatus havia sido registrada como presa de outras duas serpentes, a falsa-coral Erythrolamprus aesculapii e a coral-verdadeira Micrurus frontalis, especialistas em se alimentar de animais serpentiformes. Este foi, portanto, o primeiro registro de E. quinquelineatus como presa de uma ave. Uma contribuição simples, mas que preenche mais uma pequena lacuna de conhecimento sobre a biologia da nossa fauna. O trabalho foi publicado em revista científica Heringeriana e pode ser acessado pelo link a seguir: https://revistas.jardimbotanicodf.org/index.php/heringeriana/article/view/918008/290
Serpente Elapomorphus quinquelineatus (fura-terra-grande-de-cinco-linhas), morta por um Micrastur semitoquatus (gavião-relógio).
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AutorHenrique C. Costa Histórico
January 2024
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